quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

EUA, um “rogue state”

Em 28/12/2010, por John V. Whitbeck

John V. Whitbeck é advogado, especialista em Direito Internacional,
conselheiro da delegação palestina nas negociações com Israel.

Dia 17 de dezembro, a Bolívia reconheceu diplomaticamente o Estado da Palestina, nas fronteiras de antes de 1967 (toda a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, inclusive Jerusalém Leste).

Acontecido imediatamente depois de Brasil e Argentina também reconhecerem a Palestina, o reconhecimento pela Bolívia eleva para 106 o número de Estados-membros da ONU que reconhecem o Estado da Palestina, cuja independência foi proclamada dia 15 de novembro de 1988.

Embora esteja sob ocupação beligerante, o Estado da Palestina atende a todas as exigências da lei consuetudinária internacional para ser considerado estado soberano. Nenhuma porção do território palestino está reconhecida por qualquer outro país (exceto pela potência ocupante, Israel) como seu território soberano e, de fato, Israel só se tem declarado soberano em pequena porção do território palestino – Jerusalém Leste ‘expandida’ – o que implica que todo o território restante permanece legal e literalmente território palestino não contestado.

Nesse contexto, pode ser esclarecedor considerar a qualidade e a quantidade dos Estados que já reconheceram o Estado Palestino.

Dos nove estados mais populosos do mundo, oito (todos, exceto EUA) reconhecem o Estado da Palestina. Dos vinte estados mais populosos do mundo, 15 (todos, exceto EUA, Japão, México, Alemanha e Tailândia) reconhecem o Estado da Palestina.

Por outro lado, entre os 72 Estados-membros da ONU que atualmente reconhecem a República do Kosovo como Estado independente, só aparece um dos nove Estados mais populosos do mundo (EUA); e aparecem quatro dos vinte estados mais populosos do mundo (EUA, Japão, Alemanha e Turquia).

Quando, em julho, a Corte Internacional de Justiça declarou que a declaração unilateral de independência do Kosovo não violava a lei internacional, porque a lei internacional nada diz sobre a legalidade de declarações de independência (o que significa que nenhuma declaração de independência viola a lei internacional e que, portanto, todas são “legais”; e depende de decisão política de outros Estados soberanos reconhecer ou não a independência declarada), os EUA convocaram todos os países que ainda não haviam reconhecido o Kosovo para que o fizessem imediatamente.

Passados cinco meses, apenas três novos países responderam à convocação dos EUA – Honduras, Kiribati e Tuvalu.

Se a Liga Árabe convocasse a minoria de Estados-membros da ONU que ainda não reconheceram a Palestina, para que a reconhecessem imediatamente, não cabe dúvida de que a resposta seria bem mais eloquente (tanto em quantidade quanto em qualidade) do que a que os EUA receberam, em seu apelo a favor do Kosovo. Isso, precisamente, é o que a Liga Árabe já deveria ter feito.

Não obstante a evidência (baseada em meus cálculos pouco refinados) de que os estados nos quais vive 80-90% da população do planeta reconhecem o Estado da Palestina, e que os estados nos quais vive 10-20% da população do planeta reconhecem a República do Kosovo, a ‘mídia’ ocidental (e, de fato, boa parte, também, da ‘mídia’ não ocidental) age como se a independência do Kosovo fosse fato consumado; e como se a independência da Palestina fosse apenas um sonho que jamais se poderá realizar sem o consentimento de Israel-EUA. E boa parte da opinião pública (incluindo, parece, a liderança dos palestinos em Ramallah) tem-se deixado levar e tem reagido, pelo menos até recentemente, como objeto passivo de lavagem cerebral.

Como em vários aspectos das relações internacionais, o que interessa não é a natureza do ato (ou crime), mas, sim, quem faça o quê a quem.

A Palestina foi conquistada e continua ocupada, 43 anos depois, por forças militares de Israel. O que a maior parte do mundo (inclusive a ONU e cinco Estados-membros da União Europeia) ainda veem como a província sérvia do Kosovo foi conquistada e continua ocupada, 11 anos depois, por forças militares da OTAN.

Mas a bandeira dos EUA está sempre hasteada no Kosovo, ao lado da bandeira nacional; e a capital, Pristina, exibe um Boulevard Bill Clinton e uma estátua gigantesca, de proporções, pode-se dizer, ‘soviéticas’, do ex-presidente dos EUA.

O direito brota do poder, pelo menos nos corações e mentes dos poderosos, entre os quais se contam muitos políticos e formadores de opinião ocidentais.

Enquanto isso, quando um perpétuo “processo de paz” parece ameaçado repentinamente pelo recurso pacífico à lei internacional e a organizações internacionais, a Câmara de Deputados dos EUA acaba de aprovar, por unanimidade, projeto de lei redigido pelo AIPAC (American Israel Public Affairs Committee), que proíbe o presidente Barack Obama de reconhecer o Estado da Palestina e dá aos EUA poder de veto para impedir que chegue a bom termo qualquer iniciativa dos palestinos para tornar-se membros da ONU.

Os políticos e a ‘mídia’ ocidental usam em geral a expressão “comunidade internacional” para falar dos EUA e outros países que aceitem apoiar publicamente os EUA em determinadas questões. E chamam de “rogue state” [estado-bandido], qualquer país que resista ativamente à dominação de EUA-Israel sobre o mundo.

Pela subserviência a Israel – como outra vez se confirma na falta de qualquer voz, uma, que fosse, que protestasse contra a nova resolução da Câmara de Deputados e contra a oferta (rejeitada) que o governo Obama fez a Israel, de fato tentativa de suborno (Obama ofereceu propina gigante a Israel, em troca de suspensão por apenas 90 dias, de seu programa ilegal de colonização) –, os EUA já se autoexcluíram efetivamente da verdadeira comunidade internacional. Porque a verdadeira comunidade internacional tem de incluir a grande maioria da humanidade. E os EUA já se converteram eles próprios em “rogue state” [estado-bandido], com atos de flagrante e consistente violação, tanto da lei internacional quanto dos direitos humanos fundamentais.

Deve-se esperar que os EUA arranquem-se eles próprios do abismo e recuperem a independência. Mas todos os sinais apontam na direção oposta. Triste destino, para um país tantas vezes admirável.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Obama’s War on WikiLeaks — and Us


Michael Brenner, no Huffington Post

A maneira casual com que os norte-americanos estão rasgando suas liberdades é de tirar o fôlego. Direitos que foram reverenciados como as jóias espirituais da Nação por 225 anos estão sendo colocados de lado como se fossem descartáveis. Fazemos de conta que ainda valorizamos os ideais dos quais eles são emblemáticos no momento em que os jogamos fora. Apenas um povo confuso por emoções descontroladas e que esqueceu de sua identidade pode agir de forma tão indiferente.

As flagrantes violações de direitos e proteções legais básicos são um dos destaques da década do 11 de setembro nos Estados Unidos. Monitoramento eletrônico por atacado, detenções arbitrárias, investigações intrusivas de pessoas e organizações sem motivo ou autorização judicial, a participação da CIA e da inteligência militar na contravenção de proibições estipuladas — uma vasta gama de práticas desprezíveis e ilegais. Na semana passada atingimos uma nova profundidade no desrespeito oficial à lei.

O ataque extrajudicial do governo Obama contra o WikiLeaks e a pessoa de Julian Assange é o mais amedrontador. Autoridades federais colocaram seu peso sobre empresas privadas para que se negassem a prestar serviços ao WikiLeaks e a qualquer pessoa que pretendia estender apoio financeiro ao grupo. O fato de que o PayPal, a Amazon, a Mastercard e a Visa são prestadores de serviços públicos demonstra o abuso de poder governamental.

O Departamento de Justiça também pode ter feito pressão sobre o governo sueco para colocar a Interpol atrás do sr. Assange por conta de ofensas sexuais surreais, ainda indefinidas, que os promotores gastaram dois meses preparando. (Alegadamente, Washington ameaça cortar o compartilhamento de inteligência com as autoridades amedrontadas de Estocolmo). Agora há informações de que os suecos estão colaborando com Washington para manter Assange detido no Reino Unido por tempo suficiente para que ele seja indiciado sob alguma acusação criada pelo Departamento de Justiça, que age em completo segredo. Adicionalmente, a Força Aérea dos Estados Unidos promoveu um blecaute no acesso eletrônico em todos os seus computadores aos jornais que publicaram resumos dos telegramas vazados.

Empregados ficaram proibidos de ler os jornais sob ameaça de severa punição. Uma ordem geral proíbe todos os empregados do Departamento de Defesa de ler os telegramas impressos — seja no santuário de suas casas, seja no lobby do Hotel Intercontinental de Cabul. Esta é a versão dos militares para as práticas repressivas usadas por regimes autocráticos em todo o mundo — práticas que Washington denuncia como ataques odiosos contra a liberdade.

O ponto-chave, que supera todos os outros, é que os Estados Unidos não tem autoridade legal para fazer qualquer uma destas coisas. Não buscaram autoridade legal para fazê-lo. A Casa Branca e o Pentágono simplesmente se deram o poder de punir arbitrariamente da forma como querem. Autoridades norte-americanas, a começar de Barack Obama, estão declarando seu direito de inflingir penalidades nos cidadãos com base em nada mais que sua própria vontade. A premissa e o precedente representam contravenção direta de nossas liberdades fundamentais. Não há distinção entre estas ações e uma hipotética ação do governo federal para negar a indivíduos ou grupos serviço de banda larga ou de eletricidade sob alegação de que estes serviços poderiam ser usados para embaraçar aqueles que tem poder em Washington.

É uma situação preocupante, que se torna mais preocupante ainda pelo silêncio que cerca este assalto histórico ao poder. A mídia convencional não publica críticas editoriais, os colunistas ignoram as questões relativas às liberdades civis, assim como os editorialistas (com exceção de Eugene Robinson); as associações de advogados não falam uma palavra, as universidades continuam em seu isolamento e os políticos pedem o sangue de Assange (literalmente)  ou se escondem com medo do rótulo de serem molengas ou sabotadores da segurança da Nação. É especialmente notável que o New York Times, que poderia ser acusado de servir de acessório a qualquer crime do qual o sr. Assange possa ser acusado, manteve a boca discretamente fechada, de forma pouco heróica.

O estado coletivo do pensamento americano se mostra incapaz de fazer a distinção básica e elementar entre a preferência pessoal e a lei. Levantar a questão com colegas e amigos gera respostas que nascem tão somente do que a pessoa pensa sobre o que fazem o WikiLeaks e Assange. É uma lógica eticamente obtusa. Minha opinião pessoal não tem nada a ver com a ilegalidade e a arbitrariedade do que nosso governo está fazendo. Nem poderia. É preciso denunciar as violações de nossos princípios e leis seja quem for o objeto dos abusos. Nós parecíamos entender isso.

Para completar a semana de notícias ruins para as liberdades civis, um juiz federal, John Bates, arquivou uma ação que pretendia evitar que os Estados Unidos tornem alvo um cidadão norte-americano baseado no Iemen, Anwar al-Awlaki, que nossas agências de segurança colocaram numa hit list. A ação foi movida pelo pai do clérigo. O Departamento de Justiça de Obama alegou que o tribunal não tem autoridade legal para censurar o presidente quando ele toma decisões militares para proteger os norte-americanos de ataques terroristas. O juiz Bates arquivou a ação dizendo que apenas o sr. al-Awlaki poderia movê-la.

Agora temos a confirmação judicial do direito de autoridades indefinidas, usando critérios indefinidos, de liquidar um cidadão dos Estados Unidos apenas por vontade própria. O único recurso do alvo, aparentemente, é entrar secretamente em um tribunal federal, junto com advogados, desde que evite ser fuzilado no caminho. Novamente, não tivemos comentários públicos a respeito da decisão.

Como chegamos a este ponto? A resposta óbvia é o medo — medo explorado por autoridades eleitas cujos interesses políticos atropelam o juramento de proteger e obedecer a Constituição dos Estados Unidos da América. Medo e o comportamento que ele gera. Supostamente somos o povo cuja bravura nos mantém livres — supostamente.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Nem o inferno conhece fúria como de império corneado


15/12/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/LL16Ak02.html  
A revolução não será televisionada.
A revolução não será reapresentada, mano;
A revolução será ao vivo. 

Gill Scott-Heron, 1970
(Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=1qoalKUt0mo
Nem o inferno conhece fúria como de mulher corneada. 
William Congreve [dramaturgo inglês, 1670-1729], na peça “The Mourning Bride”, 1697 

Não há episódio de Law and Order ou The Good Wife[1] que supere isso.

Parece que tudo afinal se resumiu ao detalhe nada insignificante de conseguir, em minutos, meros 315 mil dólares em dinheiro.

Às 15h25 GMT da 3ª-feira, o fundador de WikiLeaks Julian Assange foi libertado sob fiança por uma corte londrina. Sim. As condições cairiam melhor se tivesse sido acusado de ser agente da al-Qaeda: fiança estipulada como se noticiou em 315 mil dólares, em dinheiro; ‘toque de recolher’ das 10h às 14h e das 22h às 2h; apresentação em delegacia de polícia às 18h, todos os dias; passaporte confiscado; e uso de tornozeleira eletrônica para rastrear seus movimentos. Mas pelo menos, livre!

Não, não foi bem assim. Duas horas mais tarde, Assange foi mandado de volta à presença do juiz; a Procuradoria sueca apelara. Ficou tudo como antes, pelo menos por mais 48 horas: Assange permaneceria na prisão Wandsworth, sob condições que seu advogado Mark Stephens descreveu como “Orwellianas”, “Dickensianas”, “Vitorianas” ou todas as anteriores.

O novelão exibido como extravaganza amalucada-sangrenta para tapete vermelho do Festival de Cinema de Cannes – com empurra-empurra de repórteres, flashes espocando, twittagem frenética de dentro da sala de julgamento e apoio de celebridades, de Jemima Goldsmith a Ken Loach e sobrinha de Benazir Bhutto. E tudo isso gerado por acusações de estupro apresentadas duas ex-fanzocas de Assange Anna Ardin e uma Miss W, versão irmã-gêmea da “mulher corneada” de Congreve. Pela lei inglesa, não houve estupro, segundo o advogado de Assange Geoffrey Robertson. Portanto, se não houve estupro, não há motivo para extraditar Assange para a Suécia – e da Suécia, de onde poderia ser extraditado para os EUA, como exigem seletos grupos de norte-americanos “patriotas” de tridente 
em riste.

São Julian
 ou Assange o Estuprador? 
Oh, as ligações perigosas entre sexo e a liberdade de imprensa!

Falando fora do tribunal, imediatamente depois de Assange (não) ter sido libertado sob fiança, Vaughan Smith, fundador do FrontLine Club no oeste de Londres, fez o possível para demarcar um nível adequado de debate. Disse: “Não se trata só de liberdade de imprensa. Trata-se da Internet. Como jornalistas, deveríamos estar muito preocupados com a ameaça de leis que limitarão nossa liberdade. Assange meteu um grande espelho à frente dos jornalistas. Os jornalistas estão aflitos com a imagem que estão vendo.”

Antes de todo o som e fúria judiciais, Assange ganhara o primeiro lugar em pesquisa entre leitores da revistaTime para selecionar a Personalidade do Ano de 2010. Muito à frente do segundo colocado, o primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdogan, o mesmo Erdogan que, no “cablegate” de WikiLeaks, diplomatas norte-americanos descreveram com perigoso islamista anti-norte-americano.

Casem agora essa dupla progressista Assange/Erdogan, com pesquisa da CNN na qual 44% dos britânicos declararam-se convencidos de que as acusações de crime sexual contra Assange são “pretexto” para poder mantê-lo preso, para que possa ser processado pelo governo dos EUA. Ah, as ligações perigosas entre sexo e a liberdade de imprensa, outra vez!

E tudo isso depois de Assange ter enviado mensagem ao mundo, via sua mãe, Christine, distribuída pelo canal australiano de notícias Seven News. Na mensagem, Assange não perdeu a oportunidade para mais uma bomba: “Agora sabemos que Visa, Mastercard e PayPal são instrumentos da política externa dos EUA. Antes, não sabíamos. Agora, já sabemos.” Isso é saber redigir manchete de primeira página!

E quem dá aos altos executivos de Amazon, Mastercard, Visa, PayPal, Facebook, Twitter e, mais dia menos dia, Google – empresas privadas que detêm o só muito levemente mascarado monopólio da Internet – o direito de agir como editores do tipo de informação à qual a opinião pública deve ter acesso? Mega-empresas comerciais tomando decisões políticas em nome do interesse público? Bem que a opinião pública pode protestar: “OK, comprem quantos deputados e senadores dos EUA vocês queiram, mas não se metam com nosso direito de escolher.”

Em vez de acompanhar a saga sexual made-in-Scandinavia, o mundo todo deveria estar discutindo a que é a questão-chave de nosso tempo. Quem mais se beneficiará do acesso às informações mais cruciais WikiVazadas? O incansável hipercapitalismo hegemônico e seus asseclas? Ou os movimentos sociais globais contra-hegemônicos – em resumo, o poder popular?

Se o grande Herbert Marcuse estivesse vivo, já teria avisado que o império está aprendendo rapidamente a lição de WikiLeaks, e que rapidamente saberá aproveitar-se dela.

Os realistas já esperam nova legislação imperial “antiterroristas”. Pouco importa que o ex-analista da CIA Ray McGovern tenha lembrado de aspecto essencial, em entrevista na CNN: O chefe do Pentágono Robert Gates disse que os telegramas vazados não põem em risco vidas de norte-americanos (os relatórios são “altamente exagerados”, disse Gates). A OTAN disse também que “nenhuma de nossas fontes foi exposta”. E até o “El Supremo” do AfPak, general (“Estou sempre me  posicionando para 2012”) Petraeus disse a mesma coisa. Mas nada disso bastará para aplacar a elite do establishment e sua coorte de mentirosos, caluniadores, gângsteres ideológicos e vasto sortimento de parasitas, todos babando, doidos para acabar com Assange. 
Perderam o controle, outra vez 

Make no mistake[2] em matéria de o que é, mesmo, a “nova ordem mundial” real: o campo de batalha tem hoje a cara de um movimento de resistência contra a apropriação da tecnologia de informação pelas elites do poder. A fúria, a ansiedade para silenciar Assange, se não para acabar co’a raça dele, empregando para tal os meios que sejam necessários, revela a verdadeira cara do imperador: terei controle total, indivisível e indiscutível sobre todas as tecnologias.

Naturalmente, nem o próprio WikiLeaks é imune à batalha. Uma aparente orgia de transparência pode não passar de cortina de fumaça. O próprio Assange sempre reclamou que a mídia alternativa jamais se mostrou capaz de analisar e sintetizar a torrente de dados dos seus gigantescos. Apesar disso, porções imensas da opinião pública estão tendo acesso ao “cablegate” ou principalmente ou exclusivamente através dos parceiros de WikiLeaks nas grandes empresas-imprensa. São eles que selecionam, editam e definem o “ponto de vista” a partir do qual os documentos são noticiados. A palavra é sempre a mesma: manipulação. Os grandes jornais manipulam os dados vazados.

Não há razão alguma para engolir-se a ‘edição’ de Le MondeEl Pais ou do The New York Times [ou da Folha de S.Paulo, de O Estado de S.Paulo, de O Globo, da revista Veja etc., no Brasil (NTs)]. Já há inúmeros exemplos, até aqui, de opinião conversacional, desimportante, enunciada por diplomata dos EUA, que se tornou evento ‘decisivo’, exclusivamente porque editada com requintes técnicos da redação do ‘jornalismo’ de futricas. É preciso que o público leia os próprios telegramas (já há 1.885 páginas espelho de WikiLeaks, e o número continua a aumentar).

Numa via paralela, a internet pulula de teorias de conspiração, segundo as quais WikiLeaks seria apenas um sofisticado agente de manipulação psicológica – incluindo a ideia de que Assange seria sido belamente pago por Israel para apagar telegramas embaraçosos (como se Israel já não vivesse suficientemente embaraçada pelo que perpetra na Palestina). Claro. É preciso também investigar WikiLeaks, para conhecer o que não está sendo divulgado.

Mas há problemas com o cenário Israel-pagou-Assange. Algum autor poderia – ou não – ter ouvido essa história de Daniel Domscheit-Berg, ex-colaborador de Assange, que agora está lançando seu próprio site de ‘vazamentos’ OpenLeaks, cujo diferencial será vazar menor volume de dados, e mais lentamente. Tanto quanto se sabe até agora, a melhor fonte de todos esses desenvolvimentos é WikiRebels, documentário de uma hora, iluminador, distribuído pela televisão pública sueca, SVT, ao qual se pode assistir aqui e agora em
http://svtplay.se/v/2264028/wikirebels_the_documentary . O saque de Roma 
Não é preciso ter os poderes analíticos de um Michel Foucault para desconfiar muito do modo como as elites do poder, seja na Suécia ou nos EUA, e sempre em nome da “liberdade”, “segurança” e um consenso universal a favor do mercado, sempre fazem o diabo para impor universalmente sua própria griffe hegemônia de transparência.

A Suécia conseguiu circunscrever e virtualmente enquadrar todos os sobretons de liberdade e da imprevisibilidade no reino das relações sexuais – com a vantagem extra de que tudo pode ser furiosamente dissecado/inspecionado.

Portanto... Todo o cuidado é pouco com fornicadores(as) cujas camisinhas dão chabu no meio nos procedimentos! É indispensável ter 100% de certeza de que em todos os inefáveis nanossegundos do rola-rola há consenso absoluto, total, irrefutável, à prova de qualquer investigação. É isso, ou você estuprou alguém. Outra vez, sei, parece reexibição “liberal” do filme de Monty Python “Inquisição Espanhola”. Confesse! Confesse! A Orgia da Transparência casa-se com a Alegria da Inquisição.

E é aí que São Julian o Apóstolo (da liberdade de expressão) converge para Assange o Estuprador, o Mártir da Transparência. E, isso, num país que tem uma das legislações mais avançadas, do mundo, de proteção à liberdade de expressão.

Mais para o fundo, a coisa fica pior. De Naomi Klein a Naomi Wolf, é evidente para todas as mulheres espertas, que as fanzocas escandinavas de Assange sentiram-se tomadas pelo “amor”. Bem, depois de uma noite veio outra noite – e deve ter sido horrível descobrir, em conversa ‘de moças’, que o “amor” fora, de fato, “traição”, mais uma, pelos imutáveis machos chauvinistas sem coração. Quem diria que a Escandinávia ainda abriga “mulheres corneadas” que ainda sonham os contos de fada de Hollywood. Pior: mulheres letradas, ferozmente independentes, na Europa e nos EUA, que avaliam Hollywood pelo que Hollywood é, consideram profundamente humilhante que essa lei sueca de mil caras infantilize a tal ponto as mulheres.

E já que estamos falando de sexo, como não lembrar a coincidência poética de esse mais recente “filme de tribunal” acontecer no mesmo dia em que o primeiro-ministro da Itália Silvio “Il Cavaliere” Berlusconi, do qual os telegramas WikiVazados só dizem, basicamente, que é ganancioso, irresponsável, dado a trinchar ninfetas em orgias à moda Nero, sobreviveu por um triz a um voto de desconfiança e, imediatamente, praticamente no mesmo instante, Roma foi tomada por furiosas manifestações de protesto e (literalmente) pegou fogo, em fúria. É como rebobinar Nero.

Mais uma vez, make no mistake: não se trata do re-incêndio da Antiga Roma. Todo o império está em fogo. O hipercapitalismo hardcore pode ser simultaneamente um Terminator e um gigante com pés de barro.

Cabe aos progressistas decifrar o enigma e enfrentar o paradoxo. A Arte de Guerra de Sun Tzu encontra Gilles Deleuze e sua máquina de guerra subterrânea. Já se combatem guerrilhas nômades de informação-tecnologia. A ‘contrainsurgência’ dos EUA está virada de pernas p’ra cima. Avante! À net-guerra! (Não esqueçam as camisinhas). 

[1] Dois seriados muito populares nos EUA, exibidos no Brasil em canais a cabo.
[2] É expressão muito frequente nos discursos do presidente Obama, quase um cacoete. Pode ser traduzido por “que ninguém se engane” ou “não se iludam” (NTs).

Protejam Assange!



15/12/2010, John Pilger, New Statesman
"Guardiões dos direitos da mulher” na imprensa de esquerda britânica apressaram-se em condenar o fundador de WikiLeaks. De fato, a cada passo de seus contatos com nosso sistema judicial, os direitos humanos básicos de Assange foram desrespeitados.

Há quarenta anos, um livro intitulado The Greening of America [O rejuvenescer da América] fez furor. Na capa, lia-se: "Há uma revolução a caminho. Não será como as revoluções do passado. Virá do indivíduo.” Naquele momento, eu trabalhava como correspondente nos EUA e lembro que o autor, jovem intelectual de Yale, Charles Reich, foi elevado, do dia para a noite, à categoria de guru. Sua mensagem era que a ação política fracassara e só a “cultura” e a introspecção poderiam mudar o mundo. A coisa misturou-se a uma insidiosa campanha de Relações Públicas das grandes corporações orientada para afastar o capitalismo ocidental do senso de liberdade inspirado nos movimentos pelos direitos civis e contra a guerra. Os novos eufemismos da propaganda passaram a ser pós-modernismo, consumismo e ‘eu-ismo’.

O ego era então o zeitgeist [al. espírito do tempo]. Impulsionado pelas forças do lucro e da mídia, a busca da consciência individual arrasou o espírito da justiça social e do internacionalismo. Proclamou-se a nova divindade; o pessoal era o político.

Em 1995, Reich publicou Opposing the System, no qual desdisse praticamente tudo que escrevera em The Greening of America. “Não haverá alívio nem para a insegurança econômica nem para o fracasso humano”, escreveu então, “até que reconheçamos que forças econômicas descontroladas criam conflito, não bem-estar (...)”. Dessa vez, não houve filas nas livrarias. Em tempos de neoliberalismo econômico, Reich estava em descompasso com o individualismo rampante da nova elite política e cultural do ocidente.

Falsas militantes

O renascimento do militarismo no ocidente e a busca por uma nova “ameaça” depois do fim da Guerra Fria decorreram da desorientação política dos que, vinte anos antes, teriam constituído oposição veemente. E afinal, dia 11/9/2001, foram finalmente silenciados, e muitos foram cooptados para a “guerra ao terror”. A invasão do Afeganistão em outubro de 2001 teve apoio de lideranças feministas, especialmente nos EUA, onde Hillary Clinton e outras falsas militantes do feminismo fizeram do tratamento às mulheres afegãs pretexto para atacar o país e provocar a morte de pelo menos 20 mil pessoas, além de dar renovado alento aos Talibã. A evidência de que os senhores-da-guerra apoiados pelos EUA eram tão violentos quanto os Talibã não foi considerada argumento capaz de contraditar tão elevadas disposições. O espírito do tempo – os anos da despolitização “pessoal” e do obnubilamento do verdadeiro radicalismo – havia funcionado. Nove anos depois, a consequência é o desastre no Afeganistão.

Parece que a lição precisa ser outra vez aprendida, se se vê a fúria com que um grupo de feministas midiáticas atira-se contra Julian Assange e WikiLeaks – a “Wikiblokesphere”, como diz Libby Brooks no Guardian de 9/12 [
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/09/nobody-gains-from-misogynist-defence-of-assange]. DoTimes ao New Statesman, muitas feministas tem-se comprometido no ataque contra Assange, a partir das acusações incompetentes, contraditórias, caóticas da justiça sueca.

Dia 9/12, o Guardian publicou longa entrevista feita por Amelia Gentleman com Claes Borgström, apresentado como "altamente respeitado advogado sueco” [
http://www.guardian.co.uk/media/2010/dec/08/julian-assange-rape-allegations]. De fato, Borgström é sobretudo poderoso membro do Partido Social Democrático. Só interveio no caso Assange quando a Procuradora sênior de Stockholm desconsiderou a acusação de “estupro” por “absoluta falta de provas”. No artigo de Gentleman para o Guardian, uma fonte anônima assopra aos leitores que “o comportamento com as mulheres (...) vai acabar criando problemas para Assange”. O boato foi levado por Brooks ao jornal, no mesmo dia. Ken Loach, eu e outros “da esquerda” estamos “lado a lado” acompanhando os odiadores de mulheres e “teóricos da conspiração”. Para o inferno a investigação jornalística. Reinam a ignorância e o preconceito.

O advogado australiano James Catlin, que defendeu Assange em outubro, diz que as duas mulheres disseram aos procuradores que haviam concordado com fazer sexo com Assange. Depois do “crime”, uma das mulheres ofereceu uma festa em homenagem a Assange. Quando Borgström foi perguntado sobre por que defendia as mulheres, dado que ambas desmentiram a acusação de estupro, ele respondeu: “Elas não são advogadas.”

Catlin descreve o sistema judicial sueco como “caixa de piadas”. Assange e seus advogados pediram, durante três meses, às autoridades suecas, que lhes fosse permitido ler o processo. Nada conseguiram até dia 18/11, quando receberam o primeiro documento – em idioma sueco, o que contraria a lei europeia.

Ameaça nada velada

Até agora, Assange ainda não foi formalmente acusado de coisa alguma. Jamais foi “fugitivo”. Pediu e obteve autorização para deixar a Suécia e a polícia britânica sempre soube de seu endereço, desde o instante em que pisou em solo britânico. Nada disso impediu que um juiz inglês o prendesse dia 7/12, ignorando sete dispositivos legais, e o mandasse para uma “solitária” na prisão Wandsworth.

Em todos esses passos, os direitos humanos básicos de Assange foram desrespeitados. O covarde governo australiano, que tem a obrigação legal de proteger e apoiar seus cidadãos, ameaçou confiscar seu passaporte. Em manifestações públicas, a primeira-ministra Julia Gillard, cancelou vergonhosamente até a presunção de inocência, base do sistema jurídico em todo o mundo e também na Austrália. O ministro australiano de Relações Exteriores deveria ter convocado os dois embaixadores, da Suécia e dos EUA, para alertá-los oficialmente sobre a violência contra os direitos humanos de Assange – dentre outros, Assange é vítima no crime de incitamento ao homicídio.

Diferentes desses, multidões de cidadãos decentes reuniram-se em manifestações a favor de Assange: nem são odiadores de mulheres, nem “cães pit-bulls da internet” – expressão de Libby Brooks [e do Sr. Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo, mas nesse caso usada em geral, contra todos os que discordem dele pela internet, não apenas contra os que defendem Assange] para designar os que defendem valores diferentes dos defendidos por Charles Reich.

Noutro campo, das feministas de respeito, Naomi Klein escreveu pelo Twitter:

“Rape is being used in the #Assange prosecution in the same way that women’s freedom was used to invade Afghanistan. Wake up! #wikilieaks” / [“O estupro está sendo usado na acusação contra Assange exatamente como a liberdade da mulher foi usada para invadir o Afeganistão. Acordem!”

[tradução publicada no blog Grupo Beatrice]

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Mídia ao Avesso (coluna no Jornal Agora de 15/dez)

É impressionante como os discursos de direitos humanos, como dignidade e liberdade de expressão, sempre invocados pelos países que se intitulam xerifes do mundo para justificar sanções e ataques contra nações menores, andam queimando a língua de muita gente (dita) boa por aí. Os EUA criticam o regime cubano e as prisões políticas (seriam 115 presos por lá, segundo a Comissão Cubana de Direitos Humanos, ou apenas um, segundo a Anistia Internacional), porém o país de Obama mantém mais de 170 presos em Guantánamo, sem sequer um processo formal. Os mesmos EUA criticam a pena de morte dada à iraniana Ashtiani, acusada pelo homicídio do marido, mas 53 mulheres aguardam por seus carrascos nos corredores da morte de prisões americanas.
Agora, apesar de históricos discursos em prol da liberdade de expressão, alguns países ocidentais escorregam na armadilha da arbitrariedade e apelam para táticas nada honrosas com o fim de sufocar o site WikiLeaks, que nada mais fez do que expor como pensa a diplomacia norte-americana. No mais puro estilo "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço", alguns governos resolveram criminalizar Julian Assange como forma de sufocar o site, além de erguer bandeiras (da Visa e da Mastercard???) para pressionar empresas com ligação com o site como meio de neutralizá-lo.
Para mostrar que ainda permitem a livre expressão, o jornal Washington Times permitiu que seu colunista Jeffrey T. Kuhner publicasse a seguinte pérola: “Devemos tratar o sr. Assange da mesma forma que outros valiosos alvos terroristas: matá-lo”. Aí pode, né?
Como bem apontou o jornal The Guardian, Visa e Mastercard (que bloquearam doações via cartão para o WikiLeaks) permitem alegremente repasses para a Ku-Klux-Klan e seus racistas de lençol e fronha branca na cabeça.
E o Serra, hein? Segundo diplomatas ianques, o cara que “era do bem” prometeu às empresas estrangeiras as regras que elas quisessem para sugar o pré-sal brasileiro, como um belo milk-shake de petróleo. Que (sem) vergonha!
De acordo com os números do Twitter, Dilma foi mais comentada em 2010 (em 2º lugar entre as personalidades) do que Lady Gaga (em 3º). A presidente eleita bateu também o "homem-bomba" Julian Assange (4º), que explodiu embaixadas usando apenas as próprias palavras dos diplomatas. Mas ninguém foi mais citado do que o onipresente Justin Bieber. O guri que é primeiríssimo nas paradas de sucesso também liderou no microblog. Tem gosto pra tudo, mesmo.
No ranking de Notícias, parece que os tuiteiros andavam um pouco mais engajados. O vazamento de óleo da BP ficou no topo, seguido pelo terremoto no Haiti e pelas enchentes no Paquistão. O único tema que pendeu à futilidade entre os dez primeiros da lista foi o noivado do príncipe Williams. E só no 9º lugar.
Assunto mais indigesto, sobretudo para a maioria da mais alta corte do judiciário brasileiro, é o da responsabilização criminal dos militares que sequestraram, torturaram e mataram durante o regime militar. Processados e condenados em países como Uruguai, Argentina e Chile, no Brasil os torturadores foram anistiados, com a bênção do STF. Agora, já que as autoridades brasileiras lavaram as mãos no caso da "ditabranda", caberá à Corte Interamericana de Direitos Humanos (órgão da Organização dos Estados Americanos) julgar o país. O Brasil, como signatário de diversos tratados no âmbito da OEA, deverá passar pela vexatória situação de se ver pressionado externamente a defender os direitos mais básicos de seus cidadãos.
Dona por anos a fio do título de nº 1 em vendas no país, a Fiat anunciou a construção de sua segunda unidade de produção de automóveis. A fábrica, disputada também por São Paulo, será mesmo construída em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, por conta de oportuna prorrogação de um regime especial para o setor automotivo. Algo como a história da Ford, envolvendo o RS (Guaíba) e a Bahia (Camaçari). Será que a mudança fará Alckmin apanhar tanto quanto Olívio Dutra até hoje apanha por aqui?
Parece que finalmente quem usa a travessia entre Rio Grande e São José do Norte vai ser melhor atendido. Segundo informações, o novo capitão-dos-portos não teria gostado do que viu em algumas embarcações que exploram o serviço. E, ao que já se sabe, a fiscalização mais exigente não ficará restrita ao transporte apenas de passageiros. Enfim, uma boa notícia.
Gosto é que nem... braços. Cada um tem os seus. Dito isso, aproveito pra elogiar a decoração de Natal deste ano no Cassino. Após dois anos de enfeites medonhos, agora cabe dar os parabéns. Simples, porém bem feita, a decoração natalina do balneário dá uma primeira impressão bastante boa aos turistas e veranistas.
Se confirmada a informação, uma das figuras há mais tempo ocupando cargo na administração municipal deve se desligar na virada do ano, para ficar apenas com seus próprios negócios na iniciativa privada.
Era pretensão demais querer ganhar um Mundial sem técnico e com Alecsandro na frente. E o que o Renan fez, na minha época, dava "justa causa". :)

Como crítico contumaz da mídia, me acho no dever de fazê-lo também quando o veículo envolvido é este em que escrevo. E, na minha opinião, é o caso hoje. Matéria da página 7 desta quarta-feira (edição impressa), sobre um senhor de 85 anos que reclama de um restaurante vizinho à sua casa é, ao meu ver, não só desnecessária como exemplo de uso inadequado do jornalismo.

Pra começar, por mais que o(a) jornalista que assina a matéria tenha ouvido os dois lados, obviamente o texto mostra desconhecimento da realidade. Declarações como a de que clientes fazem algazarra ou "urinam" na frente do local são no mínimo contestáveis, já que da "matriz" do restaurante no centro de Rio Grande jamais se ouviu reclamações deste tipo. E outras chegam ao absurdo, como a de que os entregadores de mercadoria não deveriam "passar pela calçada" (pública) da casa do reclamante.

Claro que o morador, sentindo-se incomodado, tem direito a reclamar. Mas existem as autoridades competentes para tal (devidamente acionadas, e tomando as necessárias providências, pelo que se lê). E, mesmo antes disto, existe o diálogo. E isso, lembre-se, se efetivamente os problemas se manifestarem este ano (afinal, o restaurante sequer havia aberto as portas). Só então, talvez, caberia ao jornal expor aos assinantes uma mera discussão de vizinhos.

“A imprensa que fiscalizava o poder está morta”


Glenn Greenwald, na revista eletrônica Salon [excerto]

O professor de Jornalismo Jay Rosen tem análise como sempre radical, criativa e provocadora de WikiLeaks, que expressou num vídeo de 14 minutos (em http://vimeo.com/17393373). Sobre por qual razão fontes valiosas preferem enviar seus documentos e outros vazamentos a WikiLeaks, em vez de enviar à imprensa-empresa tradicional, diz ele:

“No caso dos EUA, uma das razões é que a própria legitimidade da imprensa está sob suspeita, aos olhos dos vazadores. E há pelo menos uma boa razão para isso. Porque, enquanto temos o que se apresenta como “imprensa cão de guarda de valores democráticos”, temos aí – à nossa frente, para quem queira ver – o claro fracasso daquela imprensa, que evidentemente não faz o que diz que faz, que seria fiscalizar o poder; a imprensa que conhecemos não faz outra coisa além de tentar ocultar os compromissos e os objetivos do poder.

Por isso, acho que é erro desqualificar o que WikiLeaks faz sem, simultaneamente, incluir no quadro os espetaculares fracassos da imprensa que conhecemos nos últimos 10, 20, 30, 40 anos – mas sobretudo nos anos recentes. Sem a crise de legitimidade que atinge o jornalismo-empresa nos EUA, os vazadores não tenderiam a confiar tanto numa ‘estrela’ global como Julian Assange e numa organização sombria como WikiLeaks…

Eventos amplíssimos, cataclísmicos (como a guerra do Iraque) considerados dentro do regime de legitimidade, estão por trás do caso de WikiLeaks, porque, não fosse por aqueles eventos, os vazadores não teriam o apoio que têm, não teriam operado de modo solidário como operaram, nem teriam a força moral que mobilizaram para expor o que o governo Obama está de fato fazendo. A imprensa que fiscalizava o poder está morta. O que resta hoje no lugar daquela imprensa é WikiLeaks”.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Racismo oficial

Por diversas vezes este blog tem se manifestado contra os abusos perpetrados por Israel. As vergonhosas ações se tornam ainda mais sem sentido quando se lembra (e não há como esquecer) o que o povo judeu sofreu durante o Holocausto.
Fiquem com o texto e tirem suas próprias conclusões:

Sobreviventes do Holocausto criticam rabinos que proibiram aluguel a árabes

GUILA FLINT
DE TEL AVIV PARA A BBC BRASIL

O presidente da Associação Internacional dos Sobreviventes do Holocausto, Noah Flug, condenou nesta quinta-feira um grupo de cerca de 50 rabinos-chefes de cidades israelenses que assinou um decreto proibindo judeus de alugarem imóveis para cidadãos árabes.

Flug exigiu que os rabinos retirem imediatamente o decreto e afirmou que ficou chocado com a declaração. "Como judeu que sofreu o Holocausto, lembro-me de como os nazistas alemães expulsaram os judeus de seus apartamentos e dos centros das cidades para criar guetos", disse ao site de notícias israelense Ynet. "Pensávamos que no nosso país isso não iria acontecer, isso é especialmente difícil para alguém que passou pelo Holocausto", acrescentou.

No decreto, os rabinos signatários ameaçam isolar da comunidade os que violarem a ordem.

O Museu do Holocausto em Jerusalém, Yad Vashem, também publicou um comunicado condenando a posição dos rabinos. De acordo com o museu, o decreto dos rabinos é "um golpe duro para os valores básicos de nossas vidas como judeus e como um povo que vive em um país democrático".
Segundo pesquisa do Israel Democracy Institute publicada no mês passado, 46% dos cidadãos judeus israelenses não gostariam de ter vizinhos árabes, e 39% não gostariam de morar perto de trabalhadores imigrantes ou com doenças mentais [o que mostra que os rabinos não estão sozinhos em suas ideias de apartheid]. Há cerca de 1,3 milhão de árabes vivendo em Israel (em sua maioria palestinos que permaneceram no território após a criação do Estado), que representam um quinto da população.

CRÍTICAS

O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, criticou o decreto dos rabinos, afirmando que "não há lugar em um Estado democrático para esse tipo de pronunciamento". Na quarta feira, após a divulgação do decreto, cerca de 150 pessoas se manifestaram em Jerusalém, em frente à sinagoga principal da cidade, levantando cartazes com os dizeres: "decreto dos rabinos = blasfêmia".
O ex-presidente do Parlamento israelense Avraham Burg, que estava entre os manifestantes, fez um apelo ao premiê Netanyahu para que demita os rabinos, que chamou de "nacionalistas e fundamentalistas". De acordo com a escritora Yael Gvirtz, "depois de combater o incêndio no Carmel, devemos nos dedicar a combater o fogo do racismo". "Esse é um judaísmo auto-concentrado, ignorante e intoxicado pelo poder", afirmou a escritora.

APOIADORES
Apesar das críticas, cerca de 300 religiosos acrescentaram suas assinaturas ao decreto dos rabinos nesta quinta-feira, segundo o jornal Yediot Aharonot. Para o rabino-chefe da cidade de Ashdod, Yossef Sheinin, a proibição "se baseia na Bíblia". "Na Bíblia está escrito que Deus deu a terra de Israel ao povo de Israel, o mundo é tão grande e Israel é tão pequeno mas todos o cobiçam, isso é injusto", afirmou Sheinin [sempre o nome de Deus para falar bobagem da boca pra fora].
O rabino-chefe do assentamento de Beit El, Shlomo Aviner, que também assinou o decreto, disse que "os árabes são 25% dos cidadãos, e não devemos ajudá-los a criar raízes em Israel". Entre os rabinos que assinaram o decreto estão os rabinos-chefes de cidades importantes como Rishon Letzion, Carmiel, Rehovot, Herzlia, Naharia e Pardes Hana e todos são funcionários públicos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Mídia ao Avesso (coluna no Jornal Agora de 08/dez)

Acabada a tal “festa da democracia”, agora é hora de limpar o salão. E isso inclui, pelo que se observa das declarações do ministro Mantega, corte de gastos. Segundo o homem, o momento é de rever o Orçamento e frear alguns investimentos que haviam, em “boa hora”, sido prometidos. Mantega admite que os cortes podem afetar obras contidas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas disse que apenas aqueles que ainda não se iniciaram. Então é esperar pra ver se, por exemplo, a festejada duplicação da BR-392 vai ser mantida no mesmo ritmo do período eleitoral ou se o governo que entra chegará dando tiro no pé.

Segundo o ministro, a economia está aquecida o suficiente e, por isso, não precisaria de tantos incentivos estatais. Seria a hora de a iniciativa privada entrar no jogo, enquanto o Estado desacelera. Mas o que preocupa é justamente esse aquecimento da economia, se levados em conta os gargalos em infraestrutura do país. Com o país crescendo, e com Copa do Mundo e Olimpíadas pela frente, será mesmo hora de frear os investimentos prometidos e planejados dentro do PAC (portos, aeroportos, transportes de massa)? Não existem outros gastos mais apropriados para serem enfrentados?

Voltando ao tema WikiLeaks, até que demorou para as superpotências (que, diga-se de passagem, já tiveram mais superpoderes, né?) começarem a enquadrar o “megavilão” de cabelos prateados que responde pela alcunha de Julian Assange. A fórmula do ataque foi a mesma de sempre: uso da mídia para mostrar o “grau de vilania” do sujeito, pressão sobre bancos para cortar-lhe financiamentos e sobre empresas (no caso, provedores de internet) para isolá-lo. E, por fim, o golpe de mestre: um processo judicial não pelos vazamentos de dados comprometedores (já que censurar informações pega mal), mas por suposto estupro, em que as provas são os testemunhos das garotas.

Ironia das ironias, a americana Amazon (que tem na venda de livros a sua origem) foi a primeira empresa a encarnar o servilismo e vetar o WikiLeaks em seus servidores de hospedagem.

Pra não dizerem que somente critico a grande mídia, aí vai um elogio (acho que é o espírito de Natal que já baixa em mim). Excelente o Globo Repórter da semana passada, no qual a jornalista Ilze Scamparini mostrou como algumas cidades italianas estão resgatando o bem-viver, em um movimento chamado “slow cities”. Pena constatar que cidades como a nossa, com um trânsito cada vez mais caótico (em um misto de falta de competência para o planejamento e falta de vontade para impor políticas alternativas de transporte) e poluição em descontrole, tomaram justamente o caminho oposto.


Quase ouso dizer que o governo Obama já é a maior decepção da história da política norte-americana. De tudo o que dele se esperava, só se recebe o inverso. Mas, arrisco, o pior desempenho é mesmo na sua política externa. O vazamento de informações que comprovam que os EUA foram manipulados pela inteligência israelense só tornam ainda mais patética a posição ianque de continuar bancando Tel-Aviv, com armas e muito dinheiro. Não à toa a Secretária de Estado americana Hillary Clinton (prevendo o melancólico fim de carreira) já anunciou que abandona a vida pública após terminar seu mandato.

Dezembro iniciou com uma importante notícia em nível mundial: o governo brasileiro reconheceu oficialmente o Estado Palestino dentro das fronteiras pré-1967 (o que inclui a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, ilegalmente ocupadas por Israel desde então). Ao anúncio brasileiro - país já elevado à potência emergente – seguiram-se os de Argentina e Uruguai. Os três, assim, juntam-se a mais de uma centena de países com o mesmo entendimento. Tudo indica que isto deixa os EUA de Obama em situação ainda mais frágil para vetar uma provável nova resolução da ONU neste sentido.

O que se discute não é o que pensa Israel (isso todo mundo já sabe), mas sim o que considera o mundo. E o direito internacional é claro neste caso. Desde 1967, quando Israel invadiu e anexou os territórios palestinos, o que se vê é claro desrespeito às convenções assinadas por líderes mundiais. A Quarta Convenção de Genebra, por exemplo, proíbe a uma potência ocupante remover populações nativas de uma área ocupada (limpeza étnica), transferir seus civis ao território ocupado (os assentamentos ilegais) e anexar terras ocupadas ao seu próprio território. Israel viola sistematicamente todas as três proibições, incorrendo assim em graves crimes de guerra no âmbito daquele tratado. O mais irônico, contudo, é lembrar que a Quarta Convenção de Genebra, de 1949, foi baseada justamente nos tribunais de Nuremberg, que julgaram a crueldade nazista contra judeus e outros povos.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O pervertido olhar ianque sobre o Oriente Médio


Em 30/11/2010, por Robert Fisk, The Independent


Aproximei-me desconfiadíssimo, do mais recente rumoroso episódio diplomático. E ontem, depois das eleições no Cairo – as eleições parlamentares egípcias foram, como sempre, mistura de farsa e fraude, o que, afinal de contas, sempre é melhor que choque e horror – mergulhei nos milhares de telegramas diplomáticos norte-americanos, sem absolutamente qualquer esperança. Como disse o presidente Hosni Mubarak, e lê-se num dos telegramas, “vocês sabem esquecer a tal de democracia”.


Não que os diplomatas dos EUA não entendam o Oriente Médio; é que eles já não sabem ver a injustiça. Quantidade imensa de literatura diplomática prova que o pilar da política dos EUA para o Oriente Médio é o alinhamento com Israel, que seu principal objetivo é encorajar os árabes a unir-se à aliança EUA-Israel contra o Irã, que a bússola da política dos EUA é a necessidade de domar/minar/esmagar/oprimir e, por fim, destruir o Irã.


Não vazou praticamente (pelo menos até agora) nenhuma referência às colônias israelenses ilegais exclusivas para judeus na Cisjordânia, nem aos ‘postos de controle’ israelenses, aos colonos israelenses extremistas, cujas casas pintam como cicatrizes de varíola toda a Cisjordânia palestina ocupada – ao vasto sistema ilegal de roubo de terra que é o coração da guerra Israel-palestinos. O que se vê mais, por incrível que pareça, são os mais variados espécimes de importantes diplomatas norte-americanos acocorados e rendidos ante as exigências de Israel – vários deles visivelmente apoiadores ardentes de Israel. É como se os chefes do Mossad e os agentes militares de inteligência de Israel obrigassem os padrinhos ouvir e decorar as instruções dos apadrinhados.


Há maravilhosa passagem nos telegramas, quando o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu explica a uma delegação do Congresso dos EUA, dia 28/4/2009, que “Estado palestino, só se for desmilitarizado, sem controle sobre o espaço aéreo e campo eletromagnético [sic], sem poder assinar tratados nem controlar fronteiras”. Assim sendo, adeus ao Estado palestino “viável” (palavra de Lord Blair de Isfahan) que todos supostamente desejamos. Não há registro nos telegramas de que os rapazes e moças deputados e senadores dos EUA e que lá ouviam Netanyahu tenham discordado.


Em vez disso, o The New York Times procurou as melhores frases. Eis o rei Abdullah da Arábia Saudita, por seu embaixador em Washington (sempre amigo da imprensa), dizendo que Abdullah crê que os EUA devem “cortar a cabeça da serpente” – onde, em “a serpente”, leia-se “o Irã” ou “Ahmadinejad” ou “as instalações nucleares do Irã” ou qualquer um desses itens ou todos.


Mas os sauditas vivem ameaçando cortar a cabeça de serpentes. Em 1982, Yasser Arafat disse que deceparia o braço esquerdo de Israel (depois que Israel invadiu o Líbano) e o então primeiro-ministro de Israel Menachem Begin respondeu que deceparia o braço direito de Arafat. Acho que quando somos informados – como, desgraçadamente, agora, por Wikileaks – de que candidatos a visto norte-americano, mas que os EUA não queiram por perto, são chamados pelos diplomatas dos EUA de “víboras do visto” [ing. visa vipers], a única conclusão a que podemos chegar é que cresce em todo o mundo a demanda por ofídios.


O problema é que, por décadas, os potentados do Oriente Médio ameaçam decepar cabeças de cobras, serpentes, ratos e insetos iranianos – esses últimos preferidos de Saddam Hussein, que usou “inseticida” fornecido pelos EUA para a matança como bem se sabe –, enquanto os líderes israelenses chamaram os palestinos de “baratas” (Rafael Eitan), “crocodilos” (Ehud Barak) e “bestas de três patas” (Begin).


Tenho de confessar que gargalhei, de chorar de rir, ante um telegrama de diplomata dos EUA, em tom solene-ridículo, reportando do Bahrain, que o rei Hamad – ou “Sua Alteza Suprema Rei Hamad”, como faz questão de ser chamado, em sua ditadura de maioria xiita em reino pouco maior que a ilha de Wight – havia declarado que o perigo de deixar prosseguir o programa nuclear iraniano era “maior que o perigo de fazê-lo parar”.


O maravilhoso jornalista palestino Marwan Bishara acertou ao dizer, no fim-de-semana, que esses papéis diplomáticos dos EUA são mais interessantes para estudos antropológicos, que para estudos políticos; porque são documento de uma perversão do pensamento ocidental sobre o Oriente Médio. Se o rei Abdullah (versão saudita em ruínas, em oposição à versão Reizinho Valente da Jordânia) realmente chamou Ahmadinejad de Hitler, se o conselheiro de Sarkozy chamou o Irã de “Estado fascista”, então se prova, apenas, que o departamento de Estado dos EUA continua obcecado com a II Guerra Mundial.


Adorei o espantoso relato de alguém que visitou a embaixada dos EUA em Ancara e contou aos diplomatas que o Líder Supremo do Irã Ali Khamenei sofria de leucemia e estava à morte. Não porque o pobre velho sofra de câncer – é mentira –, mas porque é o mesmo tipo de descalabro sobre líderes do Oriente Médio recalcitrantes que se vê há muitos anos. Lembro de quando “fontes diplomáticas” norte-americanas ou britânicas inventaram que Gaddafi estaria morrendo de câncer, que Khomeini estaria morrendo de câncer (muito antes de ele morrer), que o matador de aluguel Abu Nidal estaria morrendo de câncer 20 anos antes de ser assassinado por Saddam. Até na Irlanda do Norte um miolo-mole britânico contou-nos que o líder protestante William Craig estaria morrendo de câncer. Claro que Craig sobreviveu, como o horrível Gaddafi, cuja enfermeira ucraniana é descrita nos documentos dos EUA como “voluptuosa”, o que ela é. Mas haverá alguma dama loura não “voluptuosa”, nesse tipo de novelão?


Uma das reflexões mais interessantes – atentamente ignorada pela maioria dos jornais pro-Wikileaks de ontem – aparece no relato de encontro entre uma delegação do Senado dos EUA e o presidente Bashar Assad da Síria, no início de 2010. Os EUA, disse Assad aos visitantes, possuem “gigantesco aparato de informação”, mas fracassam ao analisar essa informação. “Nós não temos as habilidades que os senhores têm”, disse em tom sinistro, mas “somos bem-sucedidos no combate aos extremistas porque contamos com melhores analistas. (…) Nos EUA vocês gostam de fuzilar [terroristas]. Sufocar as redes deles dá melhor resultado”. O Irã, concluiu Assad, era o mais importante país da região, seguido da Turquia e – número três – a Síria. O coitado velho Israel nem aparece no retrovisor.


Evidentemente, o presidente Hamid Karzai do Afeganistão é “movido à paranóia” – como todos os habitantes daquela terra, inclusive quase toda a OTAN e, sobretudo, os EUA – e naturalmente o presidente do Iêmen mente ao próprio povo que está matando representantes da al-Qa’ida, quando todos o mundo sabe que os verdadeiros culpados são os guerreiros do general David Petraeus. Líderes muçulmanos não fazem outra coisa além de mentir que as proezas militares dos EUA contra outros muçulmanos são proezas deles, não ‘nossas’.


Claro, não se pode ser tão cínico. Gostei muito do telegrama diplomático dos EUA (do Cairo, claro, não de Telavive) no qual se lê que Netanyahu seria “elegante e sedutor (…) mas nunca cumpre o que promete”. Ora! Não se aplica também a metade dos líderes árabes?


E assim chegamos ao apimentado e assustador relato de encontro entre Andrew Shapiro, “Secretário Assistente de Estado do Gabinete Político-militar dos EUA” e espiões israelenses há quase exatamente um ano. Israel não pode proteger seus Cessna Caravan e Raven aviões-robôs não pilotados no sul do Líbano, reconheceu o Mossad (o Hezbollah deve ao Mossad essa preciosa informação). Um coronel israelense “J5”, coronel Shimon Arad gorjeia sobre os perigos do “Hezbollahstão” e do “Hamastão” e sobre “o impasse político interno” no Líbano – naquele momento não havia; agora, há – e sobre o Líbano como “arena militar volátil” e a “suscetibilidade do Líbano a influências externas, inclusive da Síria, do Irã e da Arábia Saudita”.


E – claro, apesar de o coronel Arad não ter falado sobre isso – também suscetível à influência de norte-americanos, israelenses, franceses, britânicos, além, também de o Líbano também ser suscetível à influência dos turcos. Shapiro “citou a necessidade de oferecer alternativa ao Hezbollah” – talvez… os policiais da Costa Rica? – e sugeriu que o exército libanês poderia defender o Hezbollah (improvável, nas atuais circunstâncias).


Há uma inestimável rejeição-negação do relatório Goldstone da ONU sobre as atrocidades em Gaza em 2008-09, pelo major-general da reserva Amos Gilad, que diz que os documentos em que se critica Israel são “sem fundamento, porque os militares israelenses fizeram 300 mil chamadas telefônicas para as residências em Gaza antes dos ataques aéreos (…) para evitar baixas entre os civis.” O infeliz, pobre Shapiro, dado que o telegrama não registra resposta dele, manteve-se em silêncio. Teria sido apenas uma, de cada cinco famílias palestinas, avisadas por telefone, se se considera a população palestina total de Gaza, crianças, bebês, todos. E mesmo assim os israelenses mataram 1.300 palestinos, a maioria dos quais civis. Claro que a Autoridade Palestina do insípido Mahmoud Abbas não quis assumir esse campo de morticínio depois que os israelenses venceram – como Israel propôs-lhe, com aprovação dos EUA – porque Israel não venceu em Gaza. Sequer conseguiram localizar nos túneis de Gaza o soldado israelense que o Hamás mantêm preso há anos.


Há momento simbólico quando o Xeque Mohamed bin Zayed al-Nahyan de Abu Dhabi – sem comparação possível com o personagem “distante e sem carisma” de seu irmão Califa – preocupa-se com o Irã na presença do embaixador dos EUA Richard Olsen o qual, então, comenta que o Xeque “manifesta visão estratégica sobre a Região curiosamente semelhante à visão israelense”. Mas é claro que manifesta! São idênticos. Todos rezam em suas mesquitas de ouro, reis e emires e generais, comprando mais e mais armas dos EUA para protegerem-se contra “o Hitler” de Teerã – melhor Hitler, acho eu, que o Hitler do Tigre em 2003, que o Hitler do Nilo de 1956 – e praza a Deus Todo Poderoso que sejam salvos pelos santificados EUA e Israel. Fico, em suspense, à espera do próximo capítulo dessa fantasia-farsa.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Ponto final

Viral sobre a violência contra mulheres





Marido traído


Pra descontrair um pouquinho. Ensaio da fotógrafa Charlotte de Bruces: "The Lady Is a Modern Tramp"

Mídia, dominação e luta de classes



Não consegui identificar o autor do texto abaixo. Por isso, apenas aponto o link para onde teria sido originariamente postado.


Posted: 22 Nov 2010 05:34 PM PST 

Na mesma semana, dois fenômenos idênticos: de um lado, um “tal de” Luiz Carlos Prates (desculpem, eu o desconhecia até então) diz na TV que pobres não devem ter carros; do outro, o intelectual (?) Luiz Felipe Pondé lamenta no jornal o fato de pobres viajarem de avião. Manifestações que chocaram muitos telespectadores e leitores.

Prates e Pondé são figuras emergentes no Olimpo dos repetitivos popstars da grande mídia, que tem ainda o vazio Arnaldo Jabor e os Veja boys Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo entre seus membros, todos altamente irritados com o governo Lula.

Não vou entrar nos méritos do atual presidente. Mas o fato é que seu governo permitiu, sim, que muitos pobres – embora não todos – passassem a comprar mais, a realizar “planos” ou “sonhos” de consumo. Ainda que o carro não seja zero quilômetro e a viagem de avião seja comprada em uma promoção, o fato é que uma parcela da população mais pobre saiu do patamar da mera satisfação de necessidades para o nível da realização de desejos. E isso incomoda muito aos colunistas e comentaristas da mídia.

A principal função do consumo na atualidade não é satisfazer necessidades, mas diferenciar e identificar os consumidores em grupos. Ou seja: diferenciar os pobres da classe média e identificar entre si os membros da classe média. Mas e os ricos? Bem, os ricos estão acima disso tudo, seguros em sua diferença porque seu dinheiro provém do capital e não da renda e essa é uma vantagem estratosférica na lógica da diferenciação.

A partir do momento em que um pobre pode comprar as mesmas coisas que eu, que sou da classe média, pouco me diferencia dele e meu lugar privilegiado na ordem social está ameaçado. Meu pequeno consumo (no sentido de pequeno burguês) de luxo se torna algo básico e acessível a todos. Se os pobres passam a ter autonomia de consumir o mesmo que eu, eles passam a integrar o mesmo espaço que eu na pirâmide da dominação social. E isso me obriga a gastar mais, a trabalhar mais e a me endividar mais caso eu queira continuar me diferenciando pelo consumo e queira subir um degrau nessa escala. A situação é de total insegurança: meus limites estão abalados, minha estabilidade econômica também e minhas certezas mais profundas, idem. Os pobres estão mais próximos de mim do que nunca e meu pavor de me tornar um deles começa a se concretizar.

Em O Mal-Estar na Civilização, Freud mostra que é a proximidade do outro que incomoda. (O livro, um dos mais importantes de Freud para pensar a sociedade, você baixa aqui). Quanto mais semelhante ele é de nós, mais o desprezamos, principalmente porque essa semelhança ameaça a noção construída de “nós” e de “outros”. As menores diferenças nos servem para construir tal diferenciação, e Freud deu a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, O dinheiro e, no capitalismo atual, principalmente o consumo – sim, podemos consumir sem ter dinheiro, graças a cheque especial, cartão de crédito e financiamentos – ajudam a classe média a forjar sua “pequena diferença” em relação aos pobres.

Freud é bem específico:
"É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade" (p. 136 da edição da Imago).
A diferença forjada é o principal elemento para legitimar a estratificação social e, com ela, a dominação de um grupo sobre outro. E quando falamos em mídia falamos em dominação.

Um dos principais estudiosos contemporâneos da mídia, John B. Thompson mostra que todo o conteúdo produzido pela mídia é ideológico. Ele estuda os principais conceitos de ideologia da filosofia e da política – Marx, Napoleão, Lukács, Lênin, Mannheim – e elabora uma definição própria do termo: ideologia é um sistema de crenças e práticas que serve para estabelecer e sustentar as relações de dominação. (O desenvolvimento e definição literal do conceito estão em seu livro Ideologia e Cultura Moderna, Editora Vozes.) Thompson também mostra que uma das mais eficazes práticas ideológicas é a diferenciação entre “nós” e os “outros”.

Os (pseudo) intelectuais que proliferam na mídia – comentaristas e cronistas que expressam opiniões preconceituosas contra os pobres, como Pondé, Prates, Jabor, Mainardi, Azevedo – têm espaço privilegiado nos veículos e estão ali por uma razão. Eles são capazes de produzir argumentos, elaborar teses, forjar ideias, colocar em palavras a lógica nem sempre consciente de diferenciação à qual a classe média se apega para construir sua identidade e excluir os pobres de quase todos os campos da vida em sociedade. Esses “intelectuais” – alçados a esse posto não por sua competência e conhecimento, mas por dizerem o que certos grupos querem ouvir – alimentam com suas frases bem construídas a fragmentação da sociedade em camadas e a diferenciação entre cada uma delas. E não é por acaso que “situam” a diferença no universo do consumo e do prazer. São esses os elementos que humanizam o outro, o pobre, e os aproximam cada vez mais da classe média.

O ódio que expressam quando falam dos pobres é um ódio que, na verdade, poderia ser voltado a si mesmos. Odeiam-se por estarem tão próximos dos pobres, mas não conseguem enxergar essa proximidade como o que ela é: o fato de fazerem parte de uma fração mediana da pirâmide econômica, sem o capital – financeiro, social, cultural – necessário para serem alçados à classe mais alta.
Pierre Bourdieu, um mestre da sociologia e do estudo das formas de diferenciação de classe, além de “pai” dessa visão do capital como algo que vai além do dinheiro, tem duas falas muito apropriadas em seu livro A Distinção (pdf) para pensar esse ódio dos pobres. Uma é sobre a classe média (pequena burguesia): “o pequeno burguês se faz pequeno para ser burguês”, quer dizer, é melhor ser um burguês minúsculo (e medíocre) do que ser um pobre. A outra é sobre os intelectuais. Diz que eles são a fração dominada da classe dominante, ou seja, o capital de que dispõem (conhecimento, talvez, ou o mero bom uso das palavras) não é suficiente para lhes dar o poder, apenas para colocá-los a serviço do poder. Duas ideias para ter em mente na próxima vez que você abrir um jornal ou ouvir um “tal de” Prates falar na TV.

As verdadeiras razões da mídia despudorada

Nunca na história desse país, diria o torneiro mecânico que se despede da presidência da República, a chamada grande imprensa (ou simplesmente PiG, como prefere PHAmorim) destilou tanto veneno contra um governo. Foi um ataque diário, pungente, psicopático, no qual mesmo os fatos positivos eram transformados em tragédia constante. E chegou ao despudor de Veja, que publicou uma impensável capa na qual a maior autoridade do país era retratada tomando um pontapé no traseiro (e ainda dizem que o governo Lula censura a imprensa brasileira!).
Pra quem se vale apenas destes veículos, admira muito o Brasil ter sobrevivido à crise financeira mundial e, mais do que isso, ter saído fortalecido da mesma. Pelo noticiário mostrando "terra arrasada" a cada nova capa do lixo semanal de Veja, por exemplo, nossa economia deveria estar claudicando, o desemprego deveria ter explodido, a inflação tinha que estar em total descontrole e juros e risco-país estariam agora em níveis estratosféricos.
Como não é o que acontece, então alguma coisa deveria explicar essa psicose da grande mídia contra o governo. Só a aversão à ascensão das classes mais pobres, com quem agora as "elites intelectuais do país" têm agora que dividir espaço (como nas estradas para o litoral, não é sr. Prates?), nã é capaz de explicar os ataques sem fim. Algo mais motiva os barões da mídia. E é o de sempre: a defesa do suposto privilégio de dividir o butim, no caso, representado pela bolada que os governos (todos eles) torram a cada ano em publicidade.
Basta olhar o que ocorreu com as verbas de publicidade no governo Lula. O que antes era dividido entre poucos veículos privilegiados, agora é "espraiado" por milhares de pequenos jornais, rádios, revistas e sites, capilarizando a informação e capitalizando mais empresas, gerando empregos e, não menos importante, diminuindo a concentração do poder de informar a população - democratizando a comunicação.
Buenas, e já me espalho em excesso. Fiquem a seguir com o recente artigo do cientista político e escrito Venício Lima (publicado no Observatório da Imprensa), que desnuda os números das verbas publicitárias federais.

Publicidade oficial: onde o calo dói

Ao final de dois mandatos, a mudança de orientação na distribuição das verbas oficiais de publicidade ficará na história como talvez a principal contribuição do governo Lula no sentido da democratização das comunicações. Isso pode explicar muito do comportamento da grande mídia nos últimos anos.
Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

No auge da disputa eleitoral de 2010, quando o governo e a grande mídia faziam acusações mútuas, o presidente Lula, em entrevista concedida ao portal Terra, travou o seguinte diálogo com seus entrevistadores:

Terra – (...) O senhor tem feito críticas duras, dizendo que a imprensa, a mídia tem um candidato e não tem coragem de assumir e, ao mesmo tempo, o contraditório diz que existiria um Projeto Político (...) para "enquadrar meios de comunicação". (...) O que mais incomoda o senhor: é a cobertura (ser) crítica de um lado e não existir a investigação sobre os demais candidatos? Seria isso? (...) O senhor está dizendo que ela [a imprensa] é desequilibrada? Só está cobrindo um lado e não está cobrindo...

Presidente Lula – (...) Eu acho que a imprensa está cumprindo um papel importante quando ela denuncia. Por quê? Ou você sabe por que alguém denunciou, ou você sabe por que alguém cobriu ou você sabe por que saiu na imprensa. Quando sai alguma coisa na imprensa você vai atrás. (...) Vou te dar um exemplo, sem citar jornal. Na campanha passada, os caras diziam, "porque o avião do Lula...", porque o Aerolula... Passando para a sociedade, disseminando umas bobagens, vai despolitizando a sociedade. Agora, estão dizendo que a TV pública é a TV do Lula. Nunca disseram que a TV pública de São Paulo é do governador de São Paulo e as outras são dos outros governadores. Agora, uma TV para um presidente que está terminando o mandato daqui a três meses, é a TV Lula. Ou seja, esse carregamento de... composto de... de muita... de muita, eu diria, de muito preconceito ou de muita até, eu diria até, às vezes, ódio, demonstra o que? (...) [a imprensa] se comporta como se o pessoal da Senzala tivesse chegando à Casa Grande. (...) Agora, a verdade é que nós temos nove ou dez famílias que dominam toda a comunicação desse País. A verdade é essa. A verdade é que você viaja pelo Brasil e você tem duas ou três famílias que são donas dos canais de televisão. E os mesmos são donos das rádios e os mesmos são donos dos jornais...

Terra – Nos municípios, isto tem uma capilaridade: o chefe político tal...

Presidente Lula – Então, muita gente não gostou quando, no governo, nós pegamos o dinheiro da publicidade e dividimos para o Brasil inteiro. Hoje, o jornalzinho do interior recebe uma parcela da publicidade do governo. Nós fazemos propaganda regional e a televisão regional recebe um pouco de dinheiro do governo. Quando nós distribuímos o dinheiro da cultura, por que só o eixo Rio – São Paulo e não Roraima, e não o Amazonas, e não o Pernambuco, e não o Ceará receber um pouquinho? Então, os homens da Casa Grande não gostam que isso aconteça. (Ver aqui a íntegra da entrevista.)

No trecho da entrevista acima reproduzido, o presidente Lula atribui o comportamento desequilibrado da mídia brasileira (1) ao fato de que "nove ou dez famílias" controlam a comunicação no país; (2) ao preconceito em relação a um operário ter chegado à presidência da República; e (3) à política de regionalização das verbas oficiais de publicidade iniciada em seu governo.

Que a grande mídia brasileira é olipolizada, fundada na propriedade cruzada dos meios e controlada por algumas poucas famílias, em grande parte vinculadas às velhas oligarquias políticas regionais e locais, é fato comprovado e sabido.

Que existe preconceito das "elites" brasileiras em relação à ascensão política de um operário e migrante nordestino que conquistou, em processo democrático e pelo voto, por duas vezes, a presidência da Republica, é tema que tem merecido a atenção de analistas e cientistas políticos pátrios faz tempo.

Estou, todavia, interessado na regionalização das verbas oficias de publicidade.

Mudança radical

De fato, uma importante reorientação na alocação dos recursos publicitários oficiais teve início em 2003: sem variação significativa no total da verba aplicada, o número de municípios cobertos pulou de 182 em 2003 para 2.184, em 2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no mesmo período (ver quadros abaixo).


Essa política de regionalização atende aos melhores princípios da "máxima dispersão da propriedade" [ver, neste Observatório, "Concessões de Rádio & TV: Pela máxima dispersão da propriedade"], promove a competição no mercado de comunicações, estimula o mercado de trabalho do setor e, acima de tudo, colabora para o aumento da pluralidade e da diversidade de vozes na democracia brasileira.

Há ainda um longo caminho a ser percorrido para que o Estado cumpra o seu papel e contribuía efetivamente para o cumprimento do "princípio da complementaridade", isto é, do equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal de comunicações, como reza o artigo 223 da Constituição de 1988.

Para isso, a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial precisa contribuir, de fato, para o surgimento e a consolidação dos sistemas público e comunitário de mídia no país.

De qualquer maneira, ao final de dois mandatos, a mudança de orientação na distribuição das verbas oficiais de publicidade ficará na história como talvez a principal contribuição do governo Lula no sentido da democratização das comunicações.

Dedo na ferida

Nunca é demais lembrar que o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os maiores anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das redes de televisão privadas do país.

Não é sem razão que colunista – e não os proprietários – da Folha de S.Paulo já acusou o governo Lula de estar promovendo "Bolsa-Mídia" para uma "mídia de cabresto" e de "alimentar uma rede chapa-branca na base de verbas publicitárias" [cf. Fernando de Barros e Silva, "O Bolsa-Mídia de Lula" in Folha de S.Paulo, 01/06/2009].

Talvez a reorientação da distribuição dos recursos da publicidade oficial explique muito do comportamento da grande mídia nos últimos anos. Afinal, o governo Lula colocou o dedo na ferida, ou melhor, a grande mídia sabe exatamente onde o calo dói.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.