Richard Walden*, Huffington Post , tradução de Caia Fittipaldi
Em agosto de 1982, chefiei uma missão de auxílio humanitário ao Líbano, dois meses depois que Israel invadira o país.
O que se iniciou como incursão militar limitada, para deter ataques com mísseis contra sua fronteira, lançados pelo que então se chamava “forças da OLP”, e incursão em torno da qual Israel mobilizou todo o apoio da comunidade de judeus nos EUA e na Europa Ocidental, rapidamente despertou fundadas suspeitas de que a resposta israelense era (estava, então, sendo) desproporcional à agressão. A Força Aérea de Israel destruiu mais de 45 MIGs sírios, sem perder um único avião; inutilizou baterias antiaéreas em todo o território libanês e também em território sírio; e, ao mesmo tempo, manteve seus tanques em avançada continuada para o norte, em avanço sobre a capital, Beirute – avanço que nenhum exército israelense jamais sequer se atrevera a tentar.
Rapidamente, a simpatia pelos sofrimentos de civis israelenses, em todo o mundo, converteu-se em indignação. Em Los Angeles, o boletim diário que o consulado israelense emitia para seus grandes apoiadores judeus, doadores e financiadores, foi repentinamente cancelado depois de cinco dias de boletins em que só se louvavam os sucessos israelenses. Até os maiores ‘parceiros’ de Israel começaram a manifestar horror e indignação contra o que toda a opinião pública já definia como objetivos militares e políticos distorcidos e ambíguos.
Reunindo fundos exclusivamente privados, a ONG “Operation California” (hoje já mundialmente conhecida como “Operation USA”, fundo de ajuda humanitária constituído de recursos exclusivamente privados), anunciou a partida, rumo ao aeroporto de Beirute, do primeiro avião carregado com produtos de socorro e alimentos. Antes de que chegássemos lá, com 40 toneladas do que reuníramos, Israel bombardeou o aeroporto de Beirute, fechando-o completamente para voos comerciais e de socorro humanitário.
Fomos obrigados a voar para Larnaca, no Chipre, e alugar um barco de transporte de carga, para viagem de 16 horas. Nossa viagem e nosso esforço humanitário foi amplamente divulgado. Alguns grupos ofereceram-se para entregar os produtos aos militares israelenses dentro do Líbano, para distribuição nas áreas ocupadas – ideia que imediatamente (e indignadamente) rejeitamos.
Enquanto voávamos de Los Angeles para Chipre, as potências mundiais e a ONU negociaram um cessar-fogo que incluía a imediata evacuação de cerca de 14.000 combatentes armados da OLP, reunidos no porto Beirute, para o Chipre… com todas as armas… e para que fossem imediatamente transferidos, do aeroporto de Larnaca para vários países árabes que se dispunham a acolhê-los e, em seguida, devolvê-los aos países de origem. Nosso cargueiro DC-8 aterrizou em Beirute e taxiou diretamente para uma área do aeroporto onde uma multidão de combatentes completamente armados da OLP esperavam pelo avião que os levaria para Argélia, Líbia e outros países que lhes haviam concedido asilo.
Um alto funcionário dos EUA, da embaixada dos EUA em Beirute – cuja recepção e atenção nós não havíamos requisitado, mas que lá estava por excesso de atenção da própria embaixada –, veio ao encontro do nosso avião e elogiou o nosso esforço humanitário. Nossos produtos deveriam ser distribuídos através do Conselho das Igrejas do Oriente Médio, para cristãos libaneses, muçulmanos e palestinos, por critérios que só consideravam as necessidades manifestas e sem beneficiar prioritariamente qualquer grupo.
O Conselho de Igrejas já fretara a barca-transportadora e as 40 toneladas de produtos foram levadas às docas, acompanhadas por um repórter do LA Times, um editorialista de uma agência de notícias e quatro funcionários e voluntários da nossa organização “Operation California”.
Essa equipe, à qual se juntaram alguns (cerca de dez, no máximo) civis libaneses, que pagaram ao capitão da barca-transportadora para viajar conosco, lá se foram, com os produtos que nos cabia entregar no Líbano, para uma travessia que se esperava tormentosa, rumo a uma zona de guerra.
O que não sabíamos é que a mesma barca-transporte, antes, transportara vários combatentes armados da OLP, que haviam viajado de Beirute para Chipre, sob proteção internacional. Nessas circunstâncias, voltar para Beirute, depois de descarregar em Chipre a carga de militantes e suas armas, protegidos por observadores internacionais, não pareceu ser operação que necessitasse de proteção especial. Mas, nas primeiras horas da madrugada, fomos parados em alto mar, por embarcação não identificada, super armada, e evidentemente de israelenses. Aparentemente, os israelenses suspeitavam que os combatentes da OLP tivessem deixado as armas na barca, para que fossem reintroduzidas clandestinamente em Beirute.
Assim, invadiram uma barca que transportava comida, remédios e roupas, de missão humanitária chefiada por um judeu, acompanhado por mais dois cidadãos norte-americanos e judeus, um dos quais tinha contatos importantes dos dois lados: tanto dentro do governo de Israel quanto na comunidade de judeus norte-americanos. De fato, tínhamos “testemunhas” de tudo o que ali acontecesse.
Decidi que estávamos sendo atacados por piratas (quem, se não piratas, em barco armado e sem bandeira, abordam barca-transportadora, de madrugada, em pleno mar?). E perguntei ao comandante, quando ele e um grupo armada abordaram nossa barca: “Sua mãe sabe que o senhor é pirata, capitão?” Ele respondeu imediatamente, sem pausa: “Você é judeu. Só um judeu, nessa região, se atreveria a me dizer isso.” Eu disse a ele que nossa equipe não incluía militares, que estávamos em missão de ajuda humanitária e que um alto funcionário da embaixada dos EUA no Líbano revistara a carga e tinha em mãos uma cópia do manifesto-de-carga embarcada. Ele reuniu seus homens, voltaram todos aos seus barcos e partiram.
Relembrei tudo isso, 28 anos depois, ao saber que uma flotilha de seis barcos, transportando 800 voluntários, acabava de ser abordada e atacada em águas internacionais, ao aproximar-se da costa de Gaza, onde esperava entregar centenas de toneladas de material de ajuda humanitária. Hoje, Israel tenta justificar o assassinato de pelo menos nove pessoas (civis, voluntários) que ali viajavam, ferimentos em muitas outras, e prisão-sequestro de centenas. Diz que o ataque de pirataria não foi autorizado pelo governo de Israel. O ataque ocorreu em águas internacionais, em ponto distante 75 milhas náuticas da costa de Gaza.
Minha experiência de quem já levou ajuda humanitária a 99 países, ao longo de 31 anos, me autoriza a dizer, sem hesitar, que entregar qualquer tipo de ajuda na Cisjordânia/Gaza/Palestina é missão extremamente difícil. Não bastasse o governo israelense não autorizar e bloquear qualquer tipo de ajuda humanitária aos palestinos, também já obriga o Egito – que covardemente obedece –, a fechar a fronteira sul de Gaza.
A situação geral é mais grave hoje, do que no domingo passado. Os dois lados endureceram. Israel pode ter queimado absolutamente as boas relações que a ligavam à Turquia (e esse efeito não muda, tenha sido a ação pirata autorizada, ou não, pelo governo Netanyahu); o governo Obama – preso como refém, hoje, no ciclo eleitoral (e da dependência do dinheiro-de-campanha dos doadores judeus norte-americanos) – nada fará que altere o antiquado padrão de Washington; os europeus dificilmente aprovarão sanções contra Israel por prática de crimes seriais; tampouco criticarão Estados árabes que também apoiam atos de violência. Não há hoje qualquer, nem remota, possibilidade de paz naquela região.
* Richard Walden é presidente da ONG “Operation USA”
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