15/12/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/LL16Ak02.html
A revolução não será televisionada.
A revolução não será reapresentada, mano;
A revolução será ao vivo.
Gill Scott-Heron, 1970
(Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=1qoalKUt0mo)
A revolução não será reapresentada, mano;
A revolução será ao vivo.
Gill Scott-Heron, 1970
(Pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=1qoalKUt0mo)
Nem o inferno conhece fúria como de mulher corneada.
William Congreve [dramaturgo inglês, 1670-1729], na peça “The Mourning Bride”, 1697
William Congreve [dramaturgo inglês, 1670-1729], na peça “The Mourning Bride”, 1697
Não há episódio de Law and Order ou The Good Wife[1] que supere isso.
Parece que tudo afinal se resumiu ao detalhe nada insignificante de conseguir, em minutos, meros 315 mil dólares em dinheiro.
Às 15h25 GMT da 3ª-feira, o fundador de WikiLeaks Julian Assange foi libertado sob fiança por uma corte londrina. Sim. As condições cairiam melhor se tivesse sido acusado de ser agente da al-Qaeda: fiança estipulada como se noticiou em 315 mil dólares, em dinheiro; ‘toque de recolher’ das 10h às 14h e das 22h às 2h; apresentação em delegacia de polícia às 18h, todos os dias; passaporte confiscado; e uso de tornozeleira eletrônica para rastrear seus movimentos. Mas pelo menos, livre!
Não, não foi bem assim. Duas horas mais tarde, Assange foi mandado de volta à presença do juiz; a Procuradoria sueca apelara. Ficou tudo como antes, pelo menos por mais 48 horas: Assange permaneceria na prisão Wandsworth, sob condições que seu advogado Mark Stephens descreveu como “Orwellianas”, “Dickensianas”, “Vitorianas” ou todas as anteriores.
O novelão exibido como extravaganza amalucada-sangrenta para tapete vermelho do Festival de Cinema de Cannes – com empurra-empurra de repórteres, flashes espocando, twittagem frenética de dentro da sala de julgamento e apoio de celebridades, de Jemima Goldsmith a Ken Loach e sobrinha de Benazir Bhutto. E tudo isso gerado por acusações de estupro apresentadas duas ex-fanzocas de Assange Anna Ardin e uma Miss W, versão irmã-gêmea da “mulher corneada” de Congreve. Pela lei inglesa, não houve estupro, segundo o advogado de Assange Geoffrey Robertson. Portanto, se não houve estupro, não há motivo para extraditar Assange para a Suécia – e da Suécia, de onde poderia ser extraditado para os EUA, como exigem seletos grupos de norte-americanos “patriotas” de tridente em riste.
São Julian ou Assange o Estuprador?
Oh, as ligações perigosas entre sexo e a liberdade de imprensa!
Falando fora do tribunal, imediatamente depois de Assange (não) ter sido libertado sob fiança, Vaughan Smith, fundador do FrontLine Club no oeste de Londres, fez o possível para demarcar um nível adequado de debate. Disse: “Não se trata só de liberdade de imprensa. Trata-se da Internet. Como jornalistas, deveríamos estar muito preocupados com a ameaça de leis que limitarão nossa liberdade. Assange meteu um grande espelho à frente dos jornalistas. Os jornalistas estão aflitos com a imagem que estão vendo.”
Antes de todo o som e fúria judiciais, Assange ganhara o primeiro lugar em pesquisa entre leitores da revistaTime para selecionar a Personalidade do Ano de 2010. Muito à frente do segundo colocado, o primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdogan, o mesmo Erdogan que, no “cablegate” de WikiLeaks, diplomatas norte-americanos descreveram com perigoso islamista anti-norte-americano.
Casem agora essa dupla progressista Assange/Erdogan, com pesquisa da CNN na qual 44% dos britânicos declararam-se convencidos de que as acusações de crime sexual contra Assange são “pretexto” para poder mantê-lo preso, para que possa ser processado pelo governo dos EUA. Ah, as ligações perigosas entre sexo e a liberdade de imprensa, outra vez!
E tudo isso depois de Assange ter enviado mensagem ao mundo, via sua mãe, Christine, distribuída pelo canal australiano de notícias Seven News. Na mensagem, Assange não perdeu a oportunidade para mais uma bomba: “Agora sabemos que Visa, Mastercard e PayPal são instrumentos da política externa dos EUA. Antes, não sabíamos. Agora, já sabemos.” Isso é saber redigir manchete de primeira página!
E quem dá aos altos executivos de Amazon, Mastercard, Visa, PayPal, Facebook, Twitter e, mais dia menos dia, Google – empresas privadas que detêm o só muito levemente mascarado monopólio da Internet – o direito de agir como editores do tipo de informação à qual a opinião pública deve ter acesso? Mega-empresas comerciais tomando decisões políticas em nome do interesse público? Bem que a opinião pública pode protestar: “OK, comprem quantos deputados e senadores dos EUA vocês queiram, mas não se metam com nosso direito de escolher.”
Em vez de acompanhar a saga sexual made-in-Scandinavia, o mundo todo deveria estar discutindo a que é a questão-chave de nosso tempo. Quem mais se beneficiará do acesso às informações mais cruciais WikiVazadas? O incansável hipercapitalismo hegemônico e seus asseclas? Ou os movimentos sociais globais contra-hegemônicos – em resumo, o poder popular?
Se o grande Herbert Marcuse estivesse vivo, já teria avisado que o império está aprendendo rapidamente a lição de WikiLeaks, e que rapidamente saberá aproveitar-se dela.
Os realistas já esperam nova legislação imperial “antiterroristas”. Pouco importa que o ex-analista da CIA Ray McGovern tenha lembrado de aspecto essencial, em entrevista na CNN: O chefe do Pentágono Robert Gates disse que os telegramas vazados não põem em risco vidas de norte-americanos (os relatórios são “altamente exagerados”, disse Gates). A OTAN disse também que “nenhuma de nossas fontes foi exposta”. E até o “El Supremo” do AfPak, general (“Estou sempre me posicionando para 2012”) Petraeus disse a mesma coisa. Mas nada disso bastará para aplacar a elite do establishment e sua coorte de mentirosos, caluniadores, gângsteres ideológicos e vasto sortimento de parasitas, todos babando, doidos para acabar com Assange. Perderam o controle, outra vez
Make no mistake[2] em matéria de o que é, mesmo, a “nova ordem mundial” real: o campo de batalha tem hoje a cara de um movimento de resistência contra a apropriação da tecnologia de informação pelas elites do poder. A fúria, a ansiedade para silenciar Assange, se não para acabar co’a raça dele, empregando para tal os meios que sejam necessários, revela a verdadeira cara do imperador: terei controle total, indivisível e indiscutível sobre todas as tecnologias.
Naturalmente, nem o próprio WikiLeaks é imune à batalha. Uma aparente orgia de transparência pode não passar de cortina de fumaça. O próprio Assange sempre reclamou que a mídia alternativa jamais se mostrou capaz de analisar e sintetizar a torrente de dados dos seus gigantescos. Apesar disso, porções imensas da opinião pública estão tendo acesso ao “cablegate” ou principalmente ou exclusivamente através dos parceiros de WikiLeaks nas grandes empresas-imprensa. São eles que selecionam, editam e definem o “ponto de vista” a partir do qual os documentos são noticiados. A palavra é sempre a mesma: manipulação. Os grandes jornais manipulam os dados vazados.
Não há razão alguma para engolir-se a ‘edição’ de Le Monde, El Pais ou do The New York Times [ou da Folha de S.Paulo, de O Estado de S.Paulo, de O Globo, da revista Veja etc., no Brasil (NTs)]. Já há inúmeros exemplos, até aqui, de opinião conversacional, desimportante, enunciada por diplomata dos EUA, que se tornou evento ‘decisivo’, exclusivamente porque editada com requintes técnicos da redação do ‘jornalismo’ de futricas. É preciso que o público leia os próprios telegramas (já há 1.885 páginas espelho de WikiLeaks, e o número continua a aumentar).
Numa via paralela, a internet pulula de teorias de conspiração, segundo as quais WikiLeaks seria apenas um sofisticado agente de manipulação psicológica – incluindo a ideia de que Assange seria sido belamente pago por Israel para apagar telegramas embaraçosos (como se Israel já não vivesse suficientemente embaraçada pelo que perpetra na Palestina). Claro. É preciso também investigar WikiLeaks, para conhecer o que não está sendo divulgado.
Mas há problemas com o cenário Israel-pagou-Assange. Algum autor poderia – ou não – ter ouvido essa história de Daniel Domscheit-Berg, ex-colaborador de Assange, que agora está lançando seu próprio site de ‘vazamentos’ OpenLeaks, cujo diferencial será vazar menor volume de dados, e mais lentamente. Tanto quanto se sabe até agora, a melhor fonte de todos esses desenvolvimentos é WikiRebels, documentário de uma hora, iluminador, distribuído pela televisão pública sueca, SVT, ao qual se pode assistir aqui e agora emhttp://svtplay.se/v/2264028/wikirebels_the_documentary . O saque de Roma
Não é preciso ter os poderes analíticos de um Michel Foucault para desconfiar muito do modo como as elites do poder, seja na Suécia ou nos EUA, e sempre em nome da “liberdade”, “segurança” e um consenso universal a favor do mercado, sempre fazem o diabo para impor universalmente sua própria griffe hegemônia de transparência.
A Suécia conseguiu circunscrever e virtualmente enquadrar todos os sobretons de liberdade e da imprevisibilidade no reino das relações sexuais – com a vantagem extra de que tudo pode ser furiosamente dissecado/inspecionado.
Portanto... Todo o cuidado é pouco com fornicadores(as) cujas camisinhas dão chabu no meio nos procedimentos! É indispensável ter 100% de certeza de que em todos os inefáveis nanossegundos do rola-rola há consenso absoluto, total, irrefutável, à prova de qualquer investigação. É isso, ou você estuprou alguém. Outra vez, sei, parece reexibição “liberal” do filme de Monty Python “Inquisição Espanhola”. Confesse! Confesse! A Orgia da Transparência casa-se com a Alegria da Inquisição.
E é aí que São Julian o Apóstolo (da liberdade de expressão) converge para Assange o Estuprador, o Mártir da Transparência. E, isso, num país que tem uma das legislações mais avançadas, do mundo, de proteção à liberdade de expressão.
Mais para o fundo, a coisa fica pior. De Naomi Klein a Naomi Wolf, é evidente para todas as mulheres espertas, que as fanzocas escandinavas de Assange sentiram-se tomadas pelo “amor”. Bem, depois de uma noite veio outra noite – e deve ter sido horrível descobrir, em conversa ‘de moças’, que o “amor” fora, de fato, “traição”, mais uma, pelos imutáveis machos chauvinistas sem coração. Quem diria que a Escandinávia ainda abriga “mulheres corneadas” que ainda sonham os contos de fada de Hollywood. Pior: mulheres letradas, ferozmente independentes, na Europa e nos EUA, que avaliam Hollywood pelo que Hollywood é, consideram profundamente humilhante que essa lei sueca de mil caras infantilize a tal ponto as mulheres.
E já que estamos falando de sexo, como não lembrar a coincidência poética de esse mais recente “filme de tribunal” acontecer no mesmo dia em que o primeiro-ministro da Itália Silvio “Il Cavaliere” Berlusconi, do qual os telegramas WikiVazados só dizem, basicamente, que é ganancioso, irresponsável, dado a trinchar ninfetas em orgias à moda Nero, sobreviveu por um triz a um voto de desconfiança e, imediatamente, praticamente no mesmo instante, Roma foi tomada por furiosas manifestações de protesto e (literalmente) pegou fogo, em fúria. É como rebobinar Nero.
Mais uma vez, make no mistake: não se trata do re-incêndio da Antiga Roma. Todo o império está em fogo. O hipercapitalismo hardcore pode ser simultaneamente um Terminator e um gigante com pés de barro.
Cabe aos progressistas decifrar o enigma e enfrentar o paradoxo. A Arte de Guerra de Sun Tzu encontra Gilles Deleuze e sua máquina de guerra subterrânea. Já se combatem guerrilhas nômades de informação-tecnologia. A ‘contrainsurgência’ dos EUA está virada de pernas p’ra cima. Avante! À net-guerra! (Não esqueçam as camisinhas).
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