15/12/2010, John Pilger, New Statesman
"Guardiões dos direitos da mulher” na imprensa de esquerda britânica apressaram-se em condenar o fundador de WikiLeaks. De fato, a cada passo de seus contatos com nosso sistema judicial, os direitos humanos básicos de Assange foram desrespeitados.
Há quarenta anos, um livro intitulado The Greening of America [O rejuvenescer da América] fez furor. Na capa, lia-se: "Há uma revolução a caminho. Não será como as revoluções do passado. Virá do indivíduo.” Naquele momento, eu trabalhava como correspondente nos EUA e lembro que o autor, jovem intelectual de Yale, Charles Reich, foi elevado, do dia para a noite, à categoria de guru. Sua mensagem era que a ação política fracassara e só a “cultura” e a introspecção poderiam mudar o mundo. A coisa misturou-se a uma insidiosa campanha de Relações Públicas das grandes corporações orientada para afastar o capitalismo ocidental do senso de liberdade inspirado nos movimentos pelos direitos civis e contra a guerra. Os novos eufemismos da propaganda passaram a ser pós-modernismo, consumismo e ‘eu-ismo’.
O ego era então o zeitgeist [al. espírito do tempo]. Impulsionado pelas forças do lucro e da mídia, a busca da consciência individual arrasou o espírito da justiça social e do internacionalismo. Proclamou-se a nova divindade; o pessoal era o político.
Em 1995, Reich publicou Opposing the System, no qual desdisse praticamente tudo que escrevera em The Greening of America. “Não haverá alívio nem para a insegurança econômica nem para o fracasso humano”, escreveu então, “até que reconheçamos que forças econômicas descontroladas criam conflito, não bem-estar (...)”. Dessa vez, não houve filas nas livrarias. Em tempos de neoliberalismo econômico, Reich estava em descompasso com o individualismo rampante da nova elite política e cultural do ocidente.
Falsas militantes
O renascimento do militarismo no ocidente e a busca por uma nova “ameaça” depois do fim da Guerra Fria decorreram da desorientação política dos que, vinte anos antes, teriam constituído oposição veemente. E afinal, dia 11/9/2001, foram finalmente silenciados, e muitos foram cooptados para a “guerra ao terror”. A invasão do Afeganistão em outubro de 2001 teve apoio de lideranças feministas, especialmente nos EUA, onde Hillary Clinton e outras falsas militantes do feminismo fizeram do tratamento às mulheres afegãs pretexto para atacar o país e provocar a morte de pelo menos 20 mil pessoas, além de dar renovado alento aos Talibã. A evidência de que os senhores-da-guerra apoiados pelos EUA eram tão violentos quanto os Talibã não foi considerada argumento capaz de contraditar tão elevadas disposições. O espírito do tempo – os anos da despolitização “pessoal” e do obnubilamento do verdadeiro radicalismo – havia funcionado. Nove anos depois, a consequência é o desastre no Afeganistão.
Parece que a lição precisa ser outra vez aprendida, se se vê a fúria com que um grupo de feministas midiáticas atira-se contra Julian Assange e WikiLeaks – a “Wikiblokesphere”, como diz Libby Brooks no Guardian de 9/12 [http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/09/nobody-gains-from-misogynist-defence-of-assange]. DoTimes ao New Statesman, muitas feministas tem-se comprometido no ataque contra Assange, a partir das acusações incompetentes, contraditórias, caóticas da justiça sueca.
Dia 9/12, o Guardian publicou longa entrevista feita por Amelia Gentleman com Claes Borgström, apresentado como "altamente respeitado advogado sueco” [http://www.guardian.co.uk/media/2010/dec/08/julian-assange-rape-allegations]. De fato, Borgström é sobretudo poderoso membro do Partido Social Democrático. Só interveio no caso Assange quando a Procuradora sênior de Stockholm desconsiderou a acusação de “estupro” por “absoluta falta de provas”. No artigo de Gentleman para o Guardian, uma fonte anônima assopra aos leitores que “o comportamento com as mulheres (...) vai acabar criando problemas para Assange”. O boato foi levado por Brooks ao jornal, no mesmo dia. Ken Loach, eu e outros “da esquerda” estamos “lado a lado” acompanhando os odiadores de mulheres e “teóricos da conspiração”. Para o inferno a investigação jornalística. Reinam a ignorância e o preconceito.
O advogado australiano James Catlin, que defendeu Assange em outubro, diz que as duas mulheres disseram aos procuradores que haviam concordado com fazer sexo com Assange. Depois do “crime”, uma das mulheres ofereceu uma festa em homenagem a Assange. Quando Borgström foi perguntado sobre por que defendia as mulheres, dado que ambas desmentiram a acusação de estupro, ele respondeu: “Elas não são advogadas.”
Catlin descreve o sistema judicial sueco como “caixa de piadas”. Assange e seus advogados pediram, durante três meses, às autoridades suecas, que lhes fosse permitido ler o processo. Nada conseguiram até dia 18/11, quando receberam o primeiro documento – em idioma sueco, o que contraria a lei europeia.
Ameaça nada velada
Até agora, Assange ainda não foi formalmente acusado de coisa alguma. Jamais foi “fugitivo”. Pediu e obteve autorização para deixar a Suécia e a polícia britânica sempre soube de seu endereço, desde o instante em que pisou em solo britânico. Nada disso impediu que um juiz inglês o prendesse dia 7/12, ignorando sete dispositivos legais, e o mandasse para uma “solitária” na prisão Wandsworth.
Em todos esses passos, os direitos humanos básicos de Assange foram desrespeitados. O covarde governo australiano, que tem a obrigação legal de proteger e apoiar seus cidadãos, ameaçou confiscar seu passaporte. Em manifestações públicas, a primeira-ministra Julia Gillard, cancelou vergonhosamente até a presunção de inocência, base do sistema jurídico em todo o mundo e também na Austrália. O ministro australiano de Relações Exteriores deveria ter convocado os dois embaixadores, da Suécia e dos EUA, para alertá-los oficialmente sobre a violência contra os direitos humanos de Assange – dentre outros, Assange é vítima no crime de incitamento ao homicídio.
Diferentes desses, multidões de cidadãos decentes reuniram-se em manifestações a favor de Assange: nem são odiadores de mulheres, nem “cães pit-bulls da internet” – expressão de Libby Brooks [e do Sr. Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo, mas nesse caso usada em geral, contra todos os que discordem dele pela internet, não apenas contra os que defendem Assange] para designar os que defendem valores diferentes dos defendidos por Charles Reich.
Noutro campo, das feministas de respeito, Naomi Klein escreveu pelo Twitter:
Há quarenta anos, um livro intitulado The Greening of America [O rejuvenescer da América] fez furor. Na capa, lia-se: "Há uma revolução a caminho. Não será como as revoluções do passado. Virá do indivíduo.” Naquele momento, eu trabalhava como correspondente nos EUA e lembro que o autor, jovem intelectual de Yale, Charles Reich, foi elevado, do dia para a noite, à categoria de guru. Sua mensagem era que a ação política fracassara e só a “cultura” e a introspecção poderiam mudar o mundo. A coisa misturou-se a uma insidiosa campanha de Relações Públicas das grandes corporações orientada para afastar o capitalismo ocidental do senso de liberdade inspirado nos movimentos pelos direitos civis e contra a guerra. Os novos eufemismos da propaganda passaram a ser pós-modernismo, consumismo e ‘eu-ismo’.
O ego era então o zeitgeist [al. espírito do tempo]. Impulsionado pelas forças do lucro e da mídia, a busca da consciência individual arrasou o espírito da justiça social e do internacionalismo. Proclamou-se a nova divindade; o pessoal era o político.
Em 1995, Reich publicou Opposing the System, no qual desdisse praticamente tudo que escrevera em The Greening of America. “Não haverá alívio nem para a insegurança econômica nem para o fracasso humano”, escreveu então, “até que reconheçamos que forças econômicas descontroladas criam conflito, não bem-estar (...)”. Dessa vez, não houve filas nas livrarias. Em tempos de neoliberalismo econômico, Reich estava em descompasso com o individualismo rampante da nova elite política e cultural do ocidente.
Falsas militantes
O renascimento do militarismo no ocidente e a busca por uma nova “ameaça” depois do fim da Guerra Fria decorreram da desorientação política dos que, vinte anos antes, teriam constituído oposição veemente. E afinal, dia 11/9/2001, foram finalmente silenciados, e muitos foram cooptados para a “guerra ao terror”. A invasão do Afeganistão em outubro de 2001 teve apoio de lideranças feministas, especialmente nos EUA, onde Hillary Clinton e outras falsas militantes do feminismo fizeram do tratamento às mulheres afegãs pretexto para atacar o país e provocar a morte de pelo menos 20 mil pessoas, além de dar renovado alento aos Talibã. A evidência de que os senhores-da-guerra apoiados pelos EUA eram tão violentos quanto os Talibã não foi considerada argumento capaz de contraditar tão elevadas disposições. O espírito do tempo – os anos da despolitização “pessoal” e do obnubilamento do verdadeiro radicalismo – havia funcionado. Nove anos depois, a consequência é o desastre no Afeganistão.
Parece que a lição precisa ser outra vez aprendida, se se vê a fúria com que um grupo de feministas midiáticas atira-se contra Julian Assange e WikiLeaks – a “Wikiblokesphere”, como diz Libby Brooks no Guardian de 9/12 [http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/09/nobody-gains-from-misogynist-defence-of-assange]. DoTimes ao New Statesman, muitas feministas tem-se comprometido no ataque contra Assange, a partir das acusações incompetentes, contraditórias, caóticas da justiça sueca.
Dia 9/12, o Guardian publicou longa entrevista feita por Amelia Gentleman com Claes Borgström, apresentado como "altamente respeitado advogado sueco” [http://www.guardian.co.uk/media/2010/dec/08/julian-assange-rape-allegations]. De fato, Borgström é sobretudo poderoso membro do Partido Social Democrático. Só interveio no caso Assange quando a Procuradora sênior de Stockholm desconsiderou a acusação de “estupro” por “absoluta falta de provas”. No artigo de Gentleman para o Guardian, uma fonte anônima assopra aos leitores que “o comportamento com as mulheres (...) vai acabar criando problemas para Assange”. O boato foi levado por Brooks ao jornal, no mesmo dia. Ken Loach, eu e outros “da esquerda” estamos “lado a lado” acompanhando os odiadores de mulheres e “teóricos da conspiração”. Para o inferno a investigação jornalística. Reinam a ignorância e o preconceito.
O advogado australiano James Catlin, que defendeu Assange em outubro, diz que as duas mulheres disseram aos procuradores que haviam concordado com fazer sexo com Assange. Depois do “crime”, uma das mulheres ofereceu uma festa em homenagem a Assange. Quando Borgström foi perguntado sobre por que defendia as mulheres, dado que ambas desmentiram a acusação de estupro, ele respondeu: “Elas não são advogadas.”
Catlin descreve o sistema judicial sueco como “caixa de piadas”. Assange e seus advogados pediram, durante três meses, às autoridades suecas, que lhes fosse permitido ler o processo. Nada conseguiram até dia 18/11, quando receberam o primeiro documento – em idioma sueco, o que contraria a lei europeia.
Ameaça nada velada
Até agora, Assange ainda não foi formalmente acusado de coisa alguma. Jamais foi “fugitivo”. Pediu e obteve autorização para deixar a Suécia e a polícia britânica sempre soube de seu endereço, desde o instante em que pisou em solo britânico. Nada disso impediu que um juiz inglês o prendesse dia 7/12, ignorando sete dispositivos legais, e o mandasse para uma “solitária” na prisão Wandsworth.
Em todos esses passos, os direitos humanos básicos de Assange foram desrespeitados. O covarde governo australiano, que tem a obrigação legal de proteger e apoiar seus cidadãos, ameaçou confiscar seu passaporte. Em manifestações públicas, a primeira-ministra Julia Gillard, cancelou vergonhosamente até a presunção de inocência, base do sistema jurídico em todo o mundo e também na Austrália. O ministro australiano de Relações Exteriores deveria ter convocado os dois embaixadores, da Suécia e dos EUA, para alertá-los oficialmente sobre a violência contra os direitos humanos de Assange – dentre outros, Assange é vítima no crime de incitamento ao homicídio.
Diferentes desses, multidões de cidadãos decentes reuniram-se em manifestações a favor de Assange: nem são odiadores de mulheres, nem “cães pit-bulls da internet” – expressão de Libby Brooks [e do Sr. Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo, mas nesse caso usada em geral, contra todos os que discordem dele pela internet, não apenas contra os que defendem Assange] para designar os que defendem valores diferentes dos defendidos por Charles Reich.
Noutro campo, das feministas de respeito, Naomi Klein escreveu pelo Twitter:
“Rape is being used in the #Assange prosecution in the same way that women’s freedom was used to invade Afghanistan. Wake up! #wikilieaks” / [“O estupro está sendo usado na acusação contra Assange exatamente como a liberdade da mulher foi usada para invadir o Afeganistão. Acordem!”
[tradução publicada no blog Grupo Beatrice]
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